MATHEUS R.B. HENTSCHKE
Algumas
memórias da infância nos marcam. Uma delas, remete-se a quando eu, por volta
dos meus 8 anos, assistia ao finado canal de desenhos animados e seriados
juvenis chamado Fox Kids. Recordo-me uma vez, em especial, de ter assistido a
uma série que nunca soube ao certo o seu nome e se, por ventura, algum dia a
soube é melhor deixar esquecido, a fim de manter essa ilusão misteriosa e essa espécie
de sensação mítica que ronda a tal famigerada série a que assisti. Seu conteúdo
tratava de um adolescente, aficionado por quadrinhos, que diariamente comprava
gibis em uma loja especializada. Contudo, em um certo dia, o jovem protagonista
encontrou uma história cujo enredo se assemelhava em muito com a sua vivência,
até ele perceber que, de fato, era sobre a história de sua vida. Nesse sentido,
Boyhood, filme realizado durante 12 anos pelo notável diretor Richard Linklater
(Antes do Amanhecer), consegue ser uma película com efeito muito semelhante a
que essa história em quadrinhos teve para o protagonista da série: a de ser um
relato visual sobre a vida, em que diversas pessoas se sentirão ali retratadas,
principalmente aqueles que nasceram por volta da década de 90, em uma obra cuja
amplitude abrange uma diversa gama de questões e que consegue conquistar a
ousada universalidade tão cobiçada por inúmeros cineastas.
Boyhood
acompanha a vida de Mason Evans Jr (Ellar Coltrane), dos seus 5 anos, entrando
na escola, até aos seus 18 anos, indo para a faculdade, perpassando todas as
suas relações e situações vividas: com a sua irmã, com seus pais separados e
todas as pessoas que passam pela existência de um ser humano comum, desde
amigos de colégio até a sua primeira namorada. O roteiro preza por desenvolver
o dia a dia, o trivial da existência de cada um e consegue mostrar o quanto a
vida tem um gigantesco impacto em quem a vive, todavia se mostra bem mais
simples àqueles que a olham de fora. Tal intensão do roteiro de Linklater foi
mal interpretado por parte de alguns detratores, que julgaram Boyhood como um
filme ausente de um clímax; entretanto, torna-se meio irônico ouvir tal
argumento, uma vez que a vida de cada um de nós não é formada por emoções
cinematográficas, mas sim por sutilezas sentidas apenas àquele indivíduo que é
protagonista de sua própria história.
Mais uma
vez Linklater se mostra habilidoso quando o quesito é tratar o ser humano como
ele é, já comprovado previamente em sua obra Antes do Amanhecer e suas
continuações subsequentes, ao captar cada nuance que há na vida: desde o mais
sutil detalhe, como um desenho de televisão assistido por todos os meninos dos
anos 90, Dragon Ball Z, até os aspectos mais cruciais, como a difícil relação
de um menino que tem de morar com a sua mãe e seu padrasto além de ter que
entender e aceitar a ausência, imposta pelas circunstâncias, de seu pai. É
impossível não se sentir enquadrado em um ou mais aspectos da ambiciosa obra do
diretor, que presta um serviço notável de documentar, através da ficção, cada
detalhe e característica de uma geração.
Além
disso, Richard Linklater se mostra mais uma vez excelente em criar diálogos
verossímeis, que captam a dimensão do ser humano em todas as suas esferas,
podendo ser exemplificado na cena em que o pai de Mason (Ethan Hawke) para o
carro e conversa com seus filhos sobre não querer ser um estranho na vida
deles. Tal habilidade é complementada com a direção de um mestre no quesito de
dirigir atores, ao conseguir captar emoções de todos os seus personagens, até
mesmo dos menos inspirados em termos de atuação, como Ellar Coltrane (Mason
Jr), por exemplo. O hábil roteiro e a inspirada direção, são auxiliados por uma
montagem fantástica, que consegue transitar perfeitamente de uma fase para
outra da vida do protagonista de maneira ágil e sem a necessidade de
explicações, fato que tem se tornado uma constante em filmes com longos saltos
temporais.
Ainda
assim, Boyhood é um filme de personagens e eles é que são o grande material de
trabalho a serem utilizados por Linklater. É possível fazer uma distinção entre
mestres e discípulos, em que de um lado há Ethan Hawke e Patricia Arquette, que
se consolidam com grandes atuações seja pela veracidade de suas interpretações,
seja por carregarem a cena em que estão presentes com seus discípulos, que têm
em Ellar Coltrane e Lorelei Linklater seus representantes. Ainda que ambos não
tenham atuado mal, são levados em cena pelo diretor da película e por seus
comandantes de cena: Hawke e Arquette. É impressionante constatar o
entrosamento em que o grupo de atores se encontram, uma vez que Boyhood foi
filmado em apenas 39 dias durante esse longo período de 12 anos, ambos
componentes que poderiam surgir como um empecilho para que os intérpretes se
mantivessem conectados ao papel, fato que não se concretizou.
A
indicação ao Oscar de Hawke e Arquette é, sem dúvida alguma, obrigatória e a
provável vitória da atriz é um prêmio mais do que merecido, em sua
interpretação de uma mãe que a vida inteira lutou para alcançar uma sensação de
bem estar, de completude, ao procurar ser bem sucedida profissionalmente e
formar uma família sólida, mas que se vê amargurada e sozinha ao ver seus dois filhos
crescendo e seguindo seu rumo de independência. Contudo, o roteiro é sagaz e
entende que a vida não é feita de pontos finais, mas sim de inúmeras vírgulas
e, portanto, a personagem de Arquette termina como se uma nova porta estivesse
prestes a se abrir, observado não só para ela, bem como para todos os
personagens.
Em suma,
Boyhood: Da Infância à Juventude cumpre um papel interessantíssimo na sétima
arte, de se tornar um documento fictício, todavia de grande verossimilhança
acerca da vida, baseando-se em questões universais em que todas as pessoas de
todas as épocas passaram e viveram, mas também em aspectos mais singulares com
pequenos detalhes e sutilezas que englobam toda uma geração. Se em A Árvore da
Vida (Terrence Malick, 2011) houve a ineficaz tentativa de se explicar o sentido da
vida, Linklater opta por focar em um período da história da humanidade
conseguindo destrinchar com maior habilidade o âmago do ser humano, suas
motivações e seus rumos. Tal êxito não é possível para qualquer aventureiro na
arte de contar histórias e Boyhood se configura como um dos grandes na badalada
premiação do Oscar, em um ano que a maioria não entrou por acidente e a batalha
promete ser a de um verdadeiro duelo entre gigantes.
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