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Joy: O Nome do Sucesso (David O. Russell, 2015)

GUILHERME W. MACHADO

É comum que os cineastas, principalmente aqueles que escrevem seus próprios roteiros, montem sua carreira em cima de determinados temas ou, em alguns casos, obsessões. Isso não depende de genialidade – pode acontecer com os grandes e com outros nem tanto – nem de versatilidade, pois não é uma característica necessariamente ligada ao gênero cinematográfico. Kubrick, por exemplo, fez vários tipos de filme (guerra, ficção, terror, drama, etc), mantendo em todos alguns elementos temáticos comuns de sua carreira. David O. Russell – longe de mim dizer que é um gênio – aborda mais uma vez em Joy a questão central de sua carreira: a família americana.
Não é difícil perceber o interesse do cineasta em retratar famílias disfuncionais (seus últimos quatro filmes anexam esse mote central com um ou outro subtema). E apesar de todos os problemas que apontam em seu cinema – muitos dos quais eu concordo –, justiça seja feita: isso é algo que faz bem. A principal diferença de Joy em relação a O Lado Bom da Vida, por exemplo, é que dessa vez O. Russell adota uma visão muito mais parcial e polarizada dentro da família que estuda, com a personagem-título no centro de tudo e o restante, à exceção de sua avó cujo único propósito é narrar a história e motivar a protagonista, reduzido à vilania. Não há ponto e contraponto, há o certo (Joy) e o errado (pai e irmã).

Há, entretanto, um outro interessante lado da história, explorado principalmente no início do filme. O primeiro ato de Joy é um eficiente retrato da mediocridade, espelhada sem exceção em todos membros da família, o que o coloca como o melhor momento do filme. O fracasso impera na família de Joy, não apenas no lado profissional, mas no pessoal e no familiar. Por mais que isso seja a base para a construção de um melodrama disfuncional posteriormente no filme, nesse primeiro momento o que se sobressai mesmo é a comédia, que funciona bem.

Constata-se, então, a existência de algum grau de autoconsciência em Joy que não havia em Trapaça; uma espécie de autoironia que salva o filme do que poderia ter sido um desastre. Essa visão mais satírica do melodrama (gênero do qual o filme sequer tenta fugir) é já bem apresentada na primeira cena, com a jocosa exibição, no pior estilo novelesco, de uma fictícia “soap opera” (novela americana), que volta a aparecer em diversos momentos do filme. É quase como se O. Russell usasse esse recurso metalinguístico para debochar do seu próprio filme, encenando um melodrama forçado e maneirista para questionar a validade do gênero.
Além disso, O. Russell mudou descaradamente a história de Joy, inventando personagens (a meia-irmã), mudando completamente a personalidade de outros (da mãe e do ex-marido, que nem venezuelano era), e alterando fatos sobre a própria protagonista, que fez sim curso superior completo, de tal forma que o filme nem possa ser considerado biográfico. Acho interessante esse desprendimento da realidade – elemento que na maioria das vezes torna filmes biográficos muito chatos – em prol da arte, mas fato é que tudo isso foi feito com o propósito de pesar a mão na história de superação pessoal, tornando o filme demasiadamente apelativo. Não há sutileza alguma na condução, o que significa uma de duas coisas: ou o diretor realmente quis escrachar o melodrama biográfico (se essa foi sua proposta, saiu-se surpreendentemente bem); ou ele simplesmente abandonou o bom gosto dramático e fez um filme com o puro propósito de cativar o público com sua história de autoajuda (fórmula que costuma chamar atenção das premiações).

Especulações à parte, há coisas boas em Joy. Jennifer Lawrence, a despeito de sua legião de haters fervorosos na internet, segue destacando-se. Dessa vez num trabalho mais “contido” em relação aos seus overactings de Trapaça e O Lado Bom da Vida – que me agradam bastante, devo dizer –, a atriz carrega o filme com facilidade, fazendo um retrato ao mesmo tempo humano e carismático dessa mulher semifictícia semirreal. Sua performance transmite bem, seja na linguagem corporal ou na expressão facial, todo peso que a personagem carrega ao longo do filme, como no momento em que percebe ter que hipotecar sua casa pela segunda vez ou quando encara o fracasso de seu comercial de TV. De Niro também se sai bem, mesmo num personagem bastante maneirista e mal escrito, mas nada que mereça muito alarde.
Pode-se dizer, por fim, que Joy segue a linha mais quadradinha de filmes proposta por David O. Russell atualmente, mas com uma leve melhora em relação a seu antecessor. Apesar de seu moralismo chato e  do patriotismo desnecessário (“na América o ordinário encontra o extraordinário todos os dias”), o filme encontra bons momentos quando apela para a ironia, coisa que funciona muito bem e que poderia ter sido mais utilizada ao longo do filme, e, claro, quando depende de Lawrence.


NOTA (3/5)

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