GUILHERME W. MACHADO
É comum que os cineastas,
principalmente aqueles que escrevem seus próprios roteiros, montem sua carreira em cima
de determinados temas ou, em alguns casos, obsessões. Isso não depende de
genialidade – pode acontecer com os grandes e com outros nem tanto – nem de
versatilidade, pois não é uma característica necessariamente ligada ao gênero
cinematográfico. Kubrick, por exemplo, fez vários tipos de filme (guerra,
ficção, terror, drama, etc), mantendo em todos alguns elementos temáticos
comuns de sua carreira. David O. Russell – longe de mim dizer que é um gênio –
aborda mais uma vez em Joy a questão central de sua carreira: a família americana.
Não é difícil perceber o
interesse do cineasta em retratar famílias disfuncionais (seus últimos quatro
filmes anexam esse mote central com um ou outro subtema). E apesar de todos os
problemas que apontam em seu cinema – muitos dos quais eu concordo –,
justiça seja feita: isso é algo que faz bem. A principal diferença de Joy em
relação a O Lado Bom da Vida, por exemplo, é que dessa vez O. Russell adota uma
visão muito mais parcial e polarizada dentro da família que estuda, com a
personagem-título no centro de tudo e o restante, à exceção de sua avó cujo
único propósito é narrar a história e motivar a protagonista, reduzido à
vilania. Não há ponto e contraponto, há o certo (Joy) e o errado (pai e irmã).
Há, entretanto, um outro interessante
lado da história, explorado principalmente no início do filme. O primeiro ato
de Joy é um eficiente retrato da mediocridade, espelhada sem exceção em todos
membros da família, o que o coloca como o melhor momento do filme. O fracasso
impera na família de Joy, não apenas no lado profissional, mas no pessoal e no
familiar. Por mais que isso seja a base para a construção de um melodrama
disfuncional posteriormente no filme, nesse primeiro momento o que se sobressai mesmo
é a comédia, que funciona bem.
Constata-se, então, a existência de algum grau de autoconsciência
em Joy que não havia em Trapaça; uma espécie de autoironia que salva o filme do
que poderia ter sido um desastre. Essa visão mais satírica do melodrama (gênero
do qual o filme sequer tenta fugir) é já bem apresentada na primeira cena, com
a jocosa exibição, no pior estilo novelesco, de uma fictícia “soap opera”
(novela americana), que volta a aparecer em diversos momentos do filme. É quase
como se O. Russell usasse esse recurso metalinguístico para debochar do seu próprio
filme, encenando um melodrama forçado e maneirista para questionar a validade
do gênero.
Além disso, O. Russell mudou
descaradamente a história de Joy, inventando personagens (a meia-irmã), mudando
completamente a personalidade de outros (da mãe e do ex-marido, que nem venezuelano
era), e alterando fatos sobre a própria protagonista, que fez sim curso superior
completo, de tal forma que o filme nem possa ser considerado biográfico. Acho
interessante esse desprendimento da realidade – elemento que na maioria das
vezes torna filmes biográficos muito chatos – em prol da arte, mas fato é que
tudo isso foi feito com o propósito de pesar a mão na história de superação
pessoal, tornando o filme demasiadamente apelativo. Não há sutileza alguma na
condução, o que significa uma de duas coisas: ou o diretor realmente quis
escrachar o melodrama biográfico (se essa foi sua proposta, saiu-se surpreendentemente
bem); ou ele simplesmente abandonou o bom gosto
dramático e fez um filme com o puro propósito de cativar o público com sua história de
autoajuda (fórmula que costuma chamar atenção das premiações).
Especulações à parte, há coisas
boas em Joy. Jennifer Lawrence, a despeito de sua legião de haters fervorosos na
internet, segue destacando-se. Dessa vez num trabalho mais “contido” em relação
aos seus overactings de Trapaça e O Lado Bom da Vida – que me agradam bastante,
devo dizer –, a atriz carrega o filme com facilidade, fazendo um retrato ao
mesmo tempo humano e carismático dessa mulher semifictícia semirreal. Sua
performance transmite bem, seja na linguagem corporal ou na expressão facial,
todo peso que a personagem carrega ao longo do filme, como no momento em que percebe
ter que hipotecar sua casa pela segunda vez ou quando encara o fracasso de seu
comercial de TV. De Niro também se sai bem, mesmo num personagem bastante
maneirista e mal escrito, mas nada que mereça muito alarde.
Pode-se dizer, por fim, que Joy
segue a linha mais quadradinha de filmes proposta por David O. Russell atualmente, mas com
uma leve melhora em relação a seu antecessor. Apesar de seu moralismo chato e do patriotismo desnecessário (“na América o ordinário encontra o extraordinário todos os dias”), o filme encontra bons
momentos quando apela para a ironia, coisa que funciona muito bem e que poderia
ter sido mais utilizada ao longo do filme, e, claro, quando depende de Lawrence.
NOTA (3/5)
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