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Explicação do Filme Cidade dos Sonhos

GUILHERME W. MACHADO

Acatando pedido comum dos leitores, passei por cima de alguns receios (muitos envolvendo minha relação pessoal com o filme) e acabei por expor a forma como eu vejo a trama de Cidade dos Sonhos; fruto do suor e de consecutivas revisões do filme no início da minha adolescência. Não me considero um "visionário" nem nada, sei que – ao contrário de sete anos atrás, quando eu inutilmente varri a internet tentando buscar teorias para comparar com as minhas – hoje em dia essa interpretação já é bem difundida, muito por não ser, de fato, um filme de história muito complexa, mas sim de narrativa alternativa. Faço esse artigo, portanto, como uma “âncora”, para quem assiste o filme, o interpreta à sua maneira, e busca na internet opiniões para completar a sua visão.

OBS1: Esse texto revela vários detalhes da trama [SPOILERS], não leia sem ter visto o filme.


OBS2: Para quem prefere a análise cinematográfica e artística da obra, veja meu outro texto Crítica - Cidade dos Sonhos, essa é uma explanação de enredo.

Em primeiro lugar, preciso repetir que Cidade dos Sonhos, por mais que seja um filme cheio de simbolismos e nuances que enriquecem seu significado – e aqui entendo que haja sim influência da individualidade de quem assiste –, NÃO É um filme de “enredo aberto”, ou que tem uma história que “cada um entende como quer”. Há um enredo muito sólido e real por trás do filme de David Lynch, sobre o qual há sim diversas certezas. Vamos a elas:

O filme é dividido em dois principais blocos: o do “sonho” (realidade ficcionalizada, ilusão, ou qualquer outro jeito que queiram chamar) e o da “vida real”, chamemos assim. O sonho ocupa a maior parte, começando com os créditos iniciais (importante ressaltar que há um plano, antes desses, que não faz parte do sonho, é, aliás, a personagem indo deitar-se), e terminando após a abertura da caixa azul. A realidade é o resto, consistindo em grande parte no último ato.

O jeito mais fácil de explicar a trama do filme é fazendo o contrário desse, começando pelo fim, pela realidade. O que realmente aconteceu então? Qual seria o resumo da ópera? De forma curta e grossa, aqui vai. Diane Selwyin (Naomi Watts) era uma jovem sonhadora que tentou a fama em Hollywood, no processo de correr atrás de papéis, conheceu a também aspirante a atriz Camilla Rhodes (Laura Harring), com quem teve uma relação romântica. Camilla fez sucesso na cidade das luzes, enquanto Selwyn fracassou e começou a participar em pontas insignificantes nos filmes da amante. Esta, por sua vez, passou a envolver-se com um diretor importante e terminou seu relacionamento – que para ela nada mais era do que diversão – com Selwyn. Diane, fracassada profissionalmente, amorosamente e corroída de ódio, toma uma decisão: contrata um assassino de aluguel para matar Camilla, tarefa que ele executa com sucesso. Diane, perturbada pelo que fez decai cada vez mais no amargor de suas memórias e comete suicídio. Fim.

Bom, confesso que me sinto culpado ao reduzir a história do filme assim – não é, de forma alguma, minha intenção banalizá-lo, ao contrário – mas é realmente essa a trama central de Cidade dos Sonhos. O que acontece, e por isso ele é tão difícil de captar na primeira vez, é que Lynch introduz todos esses elementos de forma distorcida no “sonho” (no qual eles encontram-se invertidos, representando a forma como Diane os idealizaria), para depois quebrá-los pouco a pouco no bloco da realidade que, ainda por cima, não é contado com linearidade temporal (prestar atenção nos detalhes, como objetos e roupas dos personagens é importante para acompanhar essas transições).
Agora, você pode me perguntar: tá, mas o que são aqueles idosos que a conhecem no aeroporto? E aquela figura horrorosa no beco atrás da lanchonete? Ou ainda, aquele homem misterioso, e todos que trabalham para ele, que está sentado numa cadeira atrás de uma parede de vidro (esse mesmo aí de cima)? Bom, aí que eu digo que Cidade dos Sonhos ainda dá pano pra manga, e nesses casos realmente não há resposta definitiva a ser dada. Aqui vão meus pareceres:

– A figura do beco seria um símbolo da feia realidade vivia por Selwyn. Ela libera todo esse horror que é sua vida real quando abre a caixa azul (caixa de pandora), e acorda do sonho ao fazê-lo. Ora, o fato da figura estar razoavelmente caracterizada como um morador de rua reforça essa ideia – o fato de existir pessoas vivendo nessa condição é uma realidade horrível da humanidade –, que nesse caso serve como uma metáfora para um caso específico.

– Os idosos são parentes (pais, tios, avós) próximos de Selwyn que simbolizam sua vida pacata no interior, da qual ela tanto quis fugir quando foi a Los Angeles em busca da fama. Por isso, inclusive, que eles a "perseguem" imaginariamente antes do seu suicídio. A cena deles rindo sozinhos no carro na saída do aeroporto é um deboche ao otimismo ingênuo de Selwyn na chegada à cidade.
– Por último, vejo aquelas figuras “mafiosas”, como um certo deboche de Lynch sobre a própria Hollywood e os “chefões” que tocam a indústria do cinema. Caracterizá-los como uma facção de crime organizado é, claro, uma hipérbole do diretor que diz muito sobre a sua visão da própria indústria e de como ela opera.

Enfim, espero ter atendido aos que procuravam um texto mais didático sobre o enredo do filme – confesso que o meu “eu mais novo” se identifica com essa situação de querer compreender melhor aquilo que foi visto, e isso me motivou a publicar esse artigo, embora não creio que teria a mesma reação atualmente – sem ter ofendido aos que prezam pela individualidade do processo de compreensão da obra (bom, ninguém é obrigado a ler né?). Além de ser uma obra riquíssima, Cidade dos Sonhos é um dos meus filmes preferidos e merece toda atenção que recebe.


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