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Alguns pensamentos sobre The Beguiled e A Quiet Passion

GUILHERME W. MACHADO

Afirmo que foi por coincidência que acabei vendo em sequência esses dois filmes de época sobre protagonistas femininas, passados na época da Guerra Civil americana, e com propostas de revisionismo histórico. Um é O Estranho que Nós Amamos (2017), de Sofia Coppola, que faturou o prêmio de melhor direção em Cannes este ano, e o outro é Além das Palavras (2016), de Terence Davies, que ganhou nada mais que um parabéns de uma porção da crítica e uma ou outra menção à atriz Cynthia Nixon em premiações menores. Esse texto não é uma crítica propriamente dita de um filme nem de outro, apenas alguns pensamentos [meio largados] que me ocorreram sobre as proximidades e diferenças entre os projetos.

Confesso que não tenho certeza até que ponto ter visto o filme de Davies antes pode ter prejudicado minha sessão de O Estranho que Nós Amamos, mas sinceramente não acho que eu teria tido uma reação diferente ao filme se não tivesse sido esse o caso. Embora haja muito o que gostar no filme de Coppola – como o rigoroso esforço estético que ela e seu excelente diretor de fotografia, Phillipe Le Sourd, fizeram no uso da luz –, ficam nítidos os problemas da autora com a dramaturgia do material quando contrapostos com o trabalho de Davies que, mesmo com a rigidez anti-naturalista da sua condução dramática, é muito mais eficiente e refinado nesse aspecto.

Se ambos filmes retratam mulheres no purgatório de um mundo movido por convenções arbitrariamente masculinas, Coppola o faz de forma mais histérica, com a interação entre as meninas (teoricamente recatadas) de um reformatório do século XIX parecendo mais as intriguinhas de menininhas de colégios classe-média dos anos 2010. Elle Fanning, em particular, interpreta uma personagem completamente deslocada daquele tempo e espaço. Além das Palavras, de Davies, pode por sua vez não ser um retrato 100% biográfico de vida de Emily Dickinson, mas seu esforço está muito mais direcionado em captar e reproduzir as obsessões temáticas da autora e as forças que moviam seu espírito criativo do que ser completamente factual sobre sua vida, e nisso Davies teve grande sucesso.
A primeira cena, por exemplo, de Além das Palavras, mostra Dickinson jovem no seu último momento no convento de freiras no qual estudou. A rigidez com que Davies encena esse momento, com quadros simétricos, paleta de cores pouco expressiva e posicionamento quase teatral das atrizes – com a hiperdramatização de Dickinson no meio da sala, dividida entre a salvação (e obediência incontestável) e a danação (e liberdade de espírito e ação) –, dialoga perfeitamente com a tensionada estrutura social daquele momento, e particularmente com a influência exercida pela religião cristã. E dessa forma surgem exemplos por todo filme.

Por mais notável que seja o talento de Coppola para imagens (e sempre foi ao longo de sua carreira), bem como a sensibilidade moderna de sua condução, fica gritante – quando contraposto dessa forma – quão mais versado Davies é na linguagem cinematográfica e quão elegantemente complexa sua mise-en-scène ainda é comparada a um conjunto de cineastas dessa geração. Suas imagens também são poderosas e dotadas de grande beleza estética – de forma menos grandiloquente, verdade –, e somam-se de forma complementar ao seu talento para contar histórias através de imagens, evidenciado em cenas como aquela na qual a família vai tirar seu retrato e há o lapso temporal que adianta a trama vários anos para frente; lapso esse simbolizado não por um letreiro na tela, nem pelo aviso de um narrador (quantos outros cineastas colocariam a voz de Dickinson narrando esse filme, ou pelo menos esse trecho?), mas sim pela troca [de boa parte] do elenco em meio ao ensaio fotográfico. Ao fazer essa substituição de elenco em meio a uma cena, Davies passa uma mensagem um pouco diferente do que se simplesmente tivesse trocado os atores de uma cena para a outra. Assim, ele não deu a impressão de simplesmente estar cortando uma larga porção de tempo e deixando um pedaço de história da vida da escritora não contado, e sim a de subentender esses anos como frutos da estagnação de uma vida restringida por uma série de elementos inibidores que são trabalhados o filme todo (amarras e convenções sociais, deveres familiares, dúvidas e falta de autoconfiança, isolamento social...).

Confesso, ainda, que a capacidade de Coppola de encher os olhos também é algo bastante digno de apreciação, mesmo que seu esforço (especialmente quando comparados com o de Davies) parecem menos conscientes de como seus enquadramentos contam uma história do que de quão esteticamente prazerosos eles são. Há um plano, quando o personagem de Farrell, ainda ferido, recém está sendo trazido para a casa carregado pelas mulheres e ele vê a personagem de Fanning pela primeira vez. É incrível como Coppola a filma: de baixo para cima, com seu rosto parcialmente escondido por sombras por estar contra a luz do dia, mas ainda assim já conferindo a graciosidade de sua figura com a luz que vaza ao redor da sua silhueta. É uma imagem linda, e uma das minhas preferidas do filme, mas que confere à personagem um aspecto angelical que ela na realidade não possui. Por outro lado, nem sempre há comedimento na forma como a diretora articula essas belas imagens que com frequência produz. Muitos planos de ambientação não deixam de mostrar uma certa insegurança no domínio da linguagem. Tudo bem que é lindo ver os raios de sol entre as árvores do sul dos Estados Unidos, mas não precisamos ser lembrados durante toda duração do filme que estamos no sul, num local isolado pela natureza, onde os personagens tentam se esconder da realidade da Guerra Civil americana.
Que ambos diretores têm, portanto, talento com imagens é óbvio, mesmo que articulem esses talentos de formas bem distintas. Onde as diferenças começam a ficar realmente marcantes é no trato dos personagens, e por consequência do elenco. Coppola apresenta problemas graves na composição da maioria de seus personagens, sendo a única mais bem resolvida em termos de escrita e execução aquela interpretada por Kristen Dunst. Personagem essa que no fim parece fazer uma transição de coadjuvante para protagonista ao lado de Kidman, que é atriz muito talentosa e fez seu talento render dentro das circunstâncias, mas também sofre com os problemas de escrita da sua personagem.

O personagem de Farrell, por sua vez, é confusão plena; um híbrido desconfortável entre cavalheiro inglês e soldado ralé bruto. Não parece haver muita coerência nas suas ações, o que contribui para um terceiro ato abrupto e altamente problemático no filme (o mesmo acontece, em proporção menor, com Kidman). As meninas, como mencionei mais cedo, também são mal construídas, de forma que não fazem qualquer sentido naquelas circunstâncias (não passam de forma alguma por jovens recatadas, não-vividas, e de educação rígida no século XIX).

Em Além das Palavras, por mais que haja alguns maneirismos nos personagens secundários, há uma hábil fuga do maniqueísmo generalizado, coisa que nesse tipo de material era fácil de incorrer. Não há, por exemplo, uma dualidade que marque todos homens como opressores e todas mulheres como vítimas resilientes. O pai de Dickinson, por exemplo, é um personagem que carrega consigo (e por consequência perpetua) os males de uma sociedade construída através do machismo e do patriarcalismo, mas não é, no contexto em que se insere, um homem detestável, nem nada próximo disso. Ele é um pai de família afetuoso, atento as necessidades de suas filhas (não lhes mostra qualquer intolerância, mesmo em casos que para época seriam comuns) e de mente aberta para o período. Por outro lado, ele carrega defeitos que vêm junto com sua posição social e momento histórico. Isso é complexidade – que não deve ser confundido com confusão, embora a diferença nem sempre seja gritante –, e pode ser visto num conjunto de outros personagens no filme.
Enfim, percebo que não é difícil pegar essa minha bagunçada reflexão e levar para um lado de comparação (e como comparação, quase competição) entre as gerações dos cineastas – o que não deixa um pouco de ser, só que não em aspecto pejorativo –, mas não é bem esse meu ponto. Não é também sobre um embate entre classicismo e modernismo, pois digo com convicção que sou intensamente atraído por ambos, e quem me acompanha sabe da minha veneração por autores como Claire Denis, Hong Sang-soo, Michael Mann, dentre outros que atualmente praticam cinema na sua forma mais contemporânea e atenta às mudanças de seu tempo quanto é possível.


A questão é que me parece que cada vez mais certos valores de narrativa e storytelling estão sendo subjugados no mundo do cinema por outros mais imediatamente reconfortantes (como prazeres estéticos pouco propositados ou analogias planas de cunho social ou político), ainda que consideravelmente menos substanciais no seu aspecto artístico. O que retoma minha observação inicial sobre Coppola ser premiada no maior festival de cinema do mundo por esse seu trabalho enquanto o filme Davies (que sequer era elegível ao mesmo festival; repito, minha questão aqui não é de competição) mesmo lançado recentemente já é pouco lembrado. 

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