MATHEUS R.B. HENTSCHKE
Esse
homem se chamava Martin Luther King Jr. e tem em Selma não toda sua vida
representada, mas sim uma das maiores batalhas já travadas em vista do bem
comum, em que esteve diretamente envolvido: a marcha na cidade de Selma, que
visava garantir o direito de voto aos negros americanos por volta dos anos 60.
Uma película que trata de um tema tão sério e profundo, tem a responsabilidade e
a obrigação de não ser leviana e conseguir marcar seus espectadores. Selma- Uma
Luta Pela Igualdade faz jus a essa seriedade e ao decoro que tem de se haver
com um assunto tão recente e, infelizmente, ainda não superado, sendo
impressionante constatar como o filme da diretora Ava DuVernay consegue
compreender essa responsabilidade que possui e se apresenta como uma obra que
honra a memória de todos aqueles que passaram, passam ou passarão pelos
horrores do racismo e da segregação racial.
O roteiro, com seus diálogos afiados e densos, não quer transformar Martin Luther
King em um herói, fato ocorrido em Lincoln (Steven Spielberg, 2012), em que o
protagonista título se mostrava como o ser mais justo e equânime já visto na
face da terra. Em contramão desse desserviço, tem-se no protagonista de Selma
um homem que se mostra como um gigante ao agir como um líder seja em seus
discursos habilidosos e emocionantes, seja ao ter de tomar as decisões como a
cara pública de toda uma revolução pacífica. Contudo, o roteiro acerta ao
mostrar o outro lado da moeda, em que se vê Martin Luther King como um homem,
que está perto de ter seu ponto de ruptura atingido, cansado com uma guerra em
que não se vê o menor sinal de vitória há tempos. Convergente a isso, a obra
não tenta ocultar pontos mais delicados do homem por trás da imagem e chega a
tocar em aspectos de sua vida como o do adultério. Tal artimanha do roteiro, de
condensar nesse personagem o herói e o homem o humaniza, fazendo-o tangível e
engrandecendo ainda mais a lenda, já que não é apresentado um ser exterior às
capacidades humanas, mas sim um homem que tem virtudes e defeitos, todavia que
coloca tudo de lado, inseguranças, dificuldades familiares e perigos reais por
uma só questão: por uma causa.
David
Oyelowo consegue entender o objetivo da produção e atua com essa dualidade em
mente: a do pastor que tem de guiar o seu rebanho e a do homem que tem suas
fraquezas e suas vicissitudes a enfrentar. Sua atuação consegue um superávit
enorme de equilíbrio, fazendo de seu personagem uma pessoa de carne e osso, que
opta por fazer algo mais e representar uma ideia, sem nunca deixar de ser
somente um ser humano. É nesses momentos que desanima saber que o Oscar prefere
valorizar atuações análogas à própria vida do intérprete em contraste ao
trabalho de Oyelowo, que entrega um trabalho sólido e com uma naturalidade
notória. Não apenas ele, no entanto todo seu elenco de apoio, ainda que nem um
chegue a ser amplamente trabalhado, uma vez que o foco da película não são seus
personagens individualmente, mas sim uma história, uma causa. Entretanto, desde
os personagens ao lado da luta pela igualdade de direitos, como a de Oprah Winfrey
(Annie Lee Cooper), o de Henry G. Sanders (Cager Lee) e a de Carmen Ejogo
(Coretta Scott King) até a dos contrários e neutros à causa, como o de Tim Roth
(Governador George Wallace) e o de Tom Wilkinson (Presidente Lyndon B.
Johnson), respectivamente, têm seus espaços de cena na medida certa e
contribuem, ainda que sejam em breves momentos, para construir aquele período
histórico que se constituía nos EUA.
Quanto a
direção de Ava DuVernay é onde se tem o ponto mais alto da obra. No início da
película já se entende o tom que a diretora quer dar à Selma- Uma Luta Pela
Igualdade: na cena em que as meninas negras estão conversando sobre
trivialidades da vida de uma criança, um ato atroz interrompe tal momento e uma
explosão as chacina, chocando o espectador de sobremaneira. Assim, Ava
demonstra o seu intuito, o de chocar, o de impactar, não apenas em alguns
momentos, todavia sempre. Selma é o tipo de filme em que não se há tempo hábil
para recuperar o fôlego, visto que a diretora consegue manter o nível de emoção
e de carga dramática em um ponto tão elevado, que o espectador passará a
película inteira com um grito preso na garganta e lágrimas a segurar. Cada
filmagem que enquadra o grupo de manifestantes dando os braços para mais uma
manifestação ou cada tomada da nuca de Oyelowo para seu conseguinte discurso
são de emoções intensas, fato raro em qualquer filme histórico. É
impressionante que em um período que a morte já se tornou uma constante na vida
do ser humano, que basta ligar a televisão e em cinco minutos de noticiário
verá algumas dezenas, Selma consegue tornar cada uma delas singulares e atinge
o público tão calejado na vida real. Mais uma vez, o Oscar erra feio e fica
difícil entender como Ava DuVernay ficou de fora das indicações.
Selma-
Uma Luta Pela Igualdade é um projeto em que o empenho de cada integrante da
película é notório e tal esforço não foi em vão, conseguindo entregar uma obra
responsável com um tema de valor imenso tanto para as gerações passadas, quanto
as que estão por vir. É possível sentir a força daqueles homens e mulheres que
enfrentaram tamanhas injustiças, de uma luta que não foi em vão e culminou em
amplas vitórias para os negros e para nação americana como um todo, que hoje
não só possuem o direito de voto, como o de votar em um presidente negro. É uma
pena que nos dias de hoje o que gera debate não é uma obra desse calibre e
amplitude histórica, mas sim de filmes efêmeros e de temas tão rasos, como A
Entrevista (Seth Rogen, Evan Goldberg, 2014) e Cinquenta Tons de Cinza (Sam
Taylor-Johnson, 2015).
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