MATHEUS R.B. HENTSCHKE
Muitos autores literários já produziram obras que revelam o
ufanismo e o nacionalismo como uma característica de dissociação da realidade.
Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, livro do autor pré-modernista Lima
Barreto, tem-se a saga do funcionário público Policarpo, que dedica sua vida
inteira a louvar e a idolatrar o seu país, não importando as consequências de
tamanha obsessão. Contudo, tal excesso o leva a perder as pessoas ao seu redor,
sua sanidade e, até mesmo, sua vida. Nesse aspecto, Sniper Americano, mais novo
filme de Clint Eastwood (Jersey Boys), apresenta mais um protagonista que se
utiliza da bandeira de sua pátria, a fim de dar um sentido a sua vida, não
importando o quanto isso irá afetar a si e as pessoas mais próximas a ele.
A história, baseada em fatos reais e no livro Sniper
Americano, relata a vida de Chris Kyle (Bradley Cooper), um sniper dos Seals,
que participou da guerra do Iraque e matou mais de 160 pessoas. Além disso, a
trama apresenta, paralelamente, a situação do protagonista não só nos campos de
batalha, mas também na sua vida pessoal, com a sua esposa Taya (Sienna Miler) e
seus filhos. O roteiro se mostra brilhante ao conseguir bem sincronizar vários
clichês acerca da guerra e seus envolvidos, concedendo uma nova roupagem a tais
elementos. Convergente a esse fator, a película possui méritos ao conseguir extrair
a essência de seu protagonista, dando vida a uma pessoa verdadeiramente real e
não a um embuste, como inúmeros filmes de guerra o fazem com seus soldados
estereotipados e reciclados. Tem-se em Chris Kyle um homem com a frieza e a
blindagem de consciência necessárias ao seu ofício, todavia não só isso lhe
torna imprescindível no que faz, uma construção de caráter firme e uma educação
rígida, o tornaram um homem que se sente obrigado a lutar pelos seus, visto que
os ensinamentos de seu pai o grifaram: ser uma ovelha, que vê o mal tomar conta
e nada faz; ser um lobo, um predador feroz que destroça os mais fracos, a fim
de se sobressair; ou ser um pastor, que é forte o bastante para defender a si e
aos seus.
Além dessa base sólida criada para se entender as
motivações por trás de Chris, há o seu desenvolvimento como pessoa e soldado
que é feita na medida certa, mostrando desde sua juventude, como um caubói que
vive a vida como se não houvesse um dia seguinte, até um homem que almeja ser
mais e fazer mais. Para tanto, vê-se obrigado a tomar seu posto como um cão
pastor por meio da pátria e de um nacionalismo cego, tendo em mente as palavras
de seu pai que repercutiram na cabeça daquela criança até formar um homem
obcecado pelo seu dever.
A habilidade do roteiro não se resume apenas a uma sólida
construção do personagem e ao seu desenvolvimento posterior, mas também a uma
gama de relacionamentos pessoais que concedem uma completude à Sniper Americano
como poucos filmes de guerra a possuem. Chris, que a pouco havia se casado, é
chamado para o Iraque, e, de maneira magistral, Clint Eastwood consegue mostrar
como, paulatinamente, o protagonista começa a se sentir um forasteiro em seu
lar, em seu país natal, e em casa na guerra, sabiamente ilustradas com as cenas
em que o protagonista fica constantemente em silêncio ao lado de sua mulher e
no ambiente familiar e, extremamente, aberto e à vontade no meio dos confrontos
bélicos que se alastram para todos os lados no Iraque. Entretanto, essa
dinâmica não funcionaria caso não fosse a qualidade dos atores envolvidos.
Bradley Cooper consegue aqui trazer à vida um personagem verossímil,
que se faz sentir e que não necessita de explicações sobre o quanto o ator se
preparou para o papel, tal fato é notório para quem assiste ao filme. Cooper
ainda que com toda essa preparação física e psicológica, não deixa transparecer
seu esforço e atua com naturalidade, protagonizando um dos melhores papeis de
sua carreira até aqui. Sienna Miler não fica para trás e consegue não só
acompanhar o ritmo elevado de atuação de seu parceiro de cena, como também o
supera em diversos momentos, com o papel de uma esposa de grande inteligência
emocional que tenta, de todas as formas, tirar a mente de Chris do Iraque e
faze-lo se abrir com ela, para que não tenha que carregar o fardo de sua dor
interna sozinho. Sem dúvida, Sienna merecia uma indicação ao Oscar de Melhor
Atriz Coadjuvante no lugar da regular atuação de Keira Knightley em O Jogo da Imitação, uma película superestimada pela grande maioria.
O roteiro é incrível, as atuações são impecáveis; porém
quem dá forma e ritmo à Sniper Americano é Clint Eastwood, outro injustiçado
pela academia. Em tempos que os diretores optam por cenas de ação com a câmera
na mão, cortes rápidos e confusos, deixando o espectador com sérias
dificuldades de compreensão do que ocorre em cena (constituindo-se em uma forte
indireta à Paul Greengrass), tem-se em Sniper Americano um filme com inúmeras
cenas de ação, cujos cortes rápidos e uma edição de som que mantém o ritmo
frenético, conseguem ser extremamente bem sucedidas e eficientes, conquistando
o mérito de envolvimento e compreensão de cena, até mesmo, em momentos
praticamente impossíveis de se realizar tal feito. Prova disso pode ser vista
na cena em que o grupo de Chris se vê encurralado no alto de um prédio por
inimigos e uma tempestade de areia os alcança, ocorrendo uma intensa troca de
tiros que se apresentam, aos olhos do espectador, de sobremaneira envolvente e
inesperadamente inteligível.
Eastwood acerta brilhantemente em sua montagem tanto
durante a ação, quanto quando essas cenas são abruptamente cortadas para
mostrar Chris já em casa, nos Estados Unidos, concedendo a mesma sensação do
protagonista àqueles que assistem à película: de que a guerra está em outro
continente, todavia continua a bater no coração e na cabeça de Chris. Outro
mérito de Eastwood e de seus atores, é o fato da película permutar entre
gêneros distintos, indo da ação para o drama, do drama para o romance e do
romance para ação sem se tornar enfadonho ou redundante, conseguindo tornar
cada uma dessas vertentes necessárias ao desenrolar da trama e ao
desenvolvimento de seus personagens.
Em resumo, Sniper Americano consegue abranger todo um
período histórico através da fonte que realmente importa: o fator humano, sem
ser cartunesco, como em Corações de Ferro (David Ayer, 2014), ou distante, como em
Invencível (Angelina Jolie, 2014). É possível sentir os horrores da guerra tanto para
aqueles que tiveram seu país invadido, quanto para aqueles que o invadiram,
mostrando que tal recurso não traz a sensação de vitória nem para os vencidos
nem para os vencedores. Nessa ilustração histórica, tem-se em Chris Kyle um
personagem completo, ao se mostrar como pastor ao defender a sua pátria e a
seus colegas no Iraque; como ovelha ao ver sua mulher e o crescimento de seus
filhos de forma ausente e distante, mesmo quando estava de corpo presente; e
também como lobo ao ter a guerra pulsando em suas veias e as pessoas ao seu
redor tendo de aceitar aquele Chris que agia como se fosse uma bomba, sempre em
um silêncio incomodo, barulhento, mas que a qualquer minuto poderia vir a estourar.
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