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O Quarto de Jack (Lenny Abrahamson, 2015)


GUILHERME W. MACHADO

Uma janela para o mundo.

O conceito de realidade como aquilo com o que se tem contato imediato é algo muito interessante trazido por O Quarto de Jack. Para o protagonista (o jovem Jacob Trembaly) não existe nada além do “Quarto”, pois aquilo é tudo com o que já teve contato na vida, seu mundo está limitado a ele. As coisas mostradas na TV são “mágica”, e é do mesmo feitiço que o “velho Nick” consegue os mantimentos que leva para a cabana todos domingos. O mundo real de Jack resume-se, então, a sua mãe (Brie Larson), aos poucos pertences que tem no Quarto, ao velho Nick, ao próprio Quarto, e ao “espaço”, que é o céu visto pela claraboia presente no teto.

A referência à obra de Platão é evidente e vem sendo comentada nos mais diversos textos sobre o filme. O Quarto de Jack exemplifica quase que com exatidão a famosa “alegoria da caverna”, que – em linhas curtas – supõe o que aconteceria caso o ser humano nascesse e vivesse sua vida toda numa caverna, acorrentado e virado para a parede, sem nunca ter visto a luz ou nenhuma forma real, apenas os reflexos das coisas reais nas paredes da caverna; num dado momento, esse ser humano, mediante grande esforço, livraria-se de sua prisão e escaparia da caverna, tendo contato com o mundo real pela primeira vez. A grande diferença entre a alegoria e o filme é que na exposição de Platão o ser humano ficaria tentado a voltar à caverna para liberar seus companheiros ainda lá presos, mas, sem nunca terem visto a luz nem terem tido a superioridade de se libertar, eles o matariam caso tentasse tirá-los de lá.

Que o roteiro de O Quarto de Jack dá pano pra manga já ficou claro – ainda que seja possível explorar ainda outros lados reflexivos do mesmo –, portanto vou passar para o lado mais técnico/cinematográfico do filme. A direção de Lenny Abrahamson, que surpreendentemente lhe rendeu uma indicação ao Oscar, é interessante ao adotar ferrenhamente o ponto de vista de Jack sobre a história, e não o de Joy, sua mãe. Descobrimos os eventos da mesma forma que o protagonista, principalmente na primeira metade do filme, e sentimos sua passagem para o mundo real como ele a sente (aqui Abrahamson pesou um pouco a mão nos planos subjetivos e slow-motions, deve-se apontar). Houve competência também para filmar dentro de um espaço tão limitado; é impressionante perceber junto de Jack como, na última cena, o “Quarto” realmente parece menor do que pareceu durante todo filme.
Ainda assim, dá para dizer que falta algo, principalmente por parte de Abrahamson, mas que também diz respeito ao roteiro de Donoghue (que adaptou o próprio livro para o cinema). O Quarto de Jack tem questões interessantes que são bem desenvolvidas num roteiro de boa estrutura – escritores literários geralmente trazem vícios de sua arte pro cinema, mas costumam ser muito interessantes quando entendem a estrutura narrativa do mesmo –; por algum motivo, entretanto, o filme nunca decola completamente nem chega a um status de filmaço. Possivelmente isso ocorre pelas amarras da abordagem indie ao material, o que o torna mais previsível e corriqueiro, ainda que lhe renda pontos com um público específico.

Algo que me surpreendeu foi perceber como Brie Larson, que praticamente já está com o Oscar de Melhor Atriz na mão, chega quase a ser coadjuvante no filme. Alicia Vikander e Rooney Mara, por A Garota Dinamarquesa [2015] e Carol [2015], respectivamente, são mais protagonistas em seus filmes do que Larson aqui; entretanto as duas supracitadas concorrem como coadjuvantes enquanto a outra vai como principal. Vai entender...


Confusão de categorias à parte, Brie está muito bem neste complexo papel de uma jovem sequestrada aos 17 anos e que passa 7 anos trancada por um homem e violentada pelo mesmo. A sua relação com seu filho (advindo dos estupros) é muito interessante, pois enquanto há o natural amor de mãe, há também algo diferente ali. Parece que Joy em alguns momentos vê seu filho primeiro como uma ferramenta, uma fuga, para escapar do seu tormento, tanto psicologicamente quanto na prática. Enfim, é uma relação bastante complexa e bem trabalhada no filme.

O Quarto de Jack merece créditos por tratar de temar tão ricos de forma simples e acessível, mantendo ainda uma qualidade de entretenimento passageiro que só o cinema oferece. A falta de comprometimento de Abrahamson em pesar a mão no drama ou em suavizar a situação (o filme não se decide para qual dos lados vai, frequentemende alternando entre eles) faz com que seu material agrade um público amplo com mais facilidade, mas impede que seu projeto assuma maiores ambições.



NOTA (3/5)


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