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Fome de Viver (Tony Scott, 1983)


GUILHERME W. MACHADO

É assustador constatar que Fome de Viver foi apenas o primeiro filme de Tony Scott. Assustador porque é um filme muito sólido e maduro – num nível atípico para cineastas iniciantes –, dotado de momentos impressionantes e um patamar de direção que o próprio autor não voltou a apresentar em sua carreira de quase 3 décadas. Por mais que tenha tido outros trabalhos interessantes, como o ótimo Déjà Vú [2006], Scott jamais voltaria a se arriscar num terreno tão experimental e anticomercial.

SPOILERS: Esse texto revela elementos da trama, não leia sem ter visto o filme.


A história, por mais que tenha um desenvolvimento pouco atrativo ao espectador ordinário de terror, tem grandes méritos dentro do gênero. Um filme de vampiros onde esta nomenclatura jamais é utilizada é, no mínimo, curioso. Esse efeito se potencializa para quem não leu nada sobre o filme antes de vê-lo, nem mesmo a sinopse, como foi o meu caso - e que grata surpresa. Minha atenção foi irremediavelmente fisgada já na excepcional sequência de abertura sob a música “Bela Lugosi Is Dead” (uma de minhas escolhas musicais preferidas no cinema), da banda Bauhaus, não equiparada no restante da obra – que não deixa de contar, entretanto, com momentos inspirados.
Em termos de estilo visual, o Fome de Viver é um primor. Da belíssima fotografia capaz de criar lindos takes de tom quase onírico, sem nunca abandonar o jogo de sombras quase expressionista que dá o tom perfeito a obra, à ótima e detalhista direção de arte. Essa última destaca-se principalmente no que tange à melancólica mansão nova-iorquina que habita a personagem de Catherine Deneuve – excelente no papel, como sempre. Os objetos e adornos constituem quase uma narrativa própria sobre o longevo passado da protagonista, compondo um ambiente que muito revela sua personalidade. Toda essa bela caracterização é muito bem complementada pela inspirada trilha sonora, que compõe toda atmosfera gótica e melancólica.

É o diretor Tony Scott, entretanto, que leva a grande maioria dos méritos, pois foi sua refinada direção que tornou esta obra fascinante, elevando a história de Whitley Strieber – que embora trabalhe o tema com uma propriedade invejável, poderia facilmente ter caído na monotonia numa direção menos inspirada – a outro patamar no âmbito dos filmes de vampiros. Seu talento revela-se em diferentes circunstâncias: num ritmo mais frenético na hipnotizante primeira cena, passando por momentos mais melancólicos sutis na sequência da morte do personagem de Bowie, até ser exigido de forma mais intensa e sensual na instauração do novo romance. Claro que todas essas mudanças apenas são possíveis sem estranhamento por conta do ótimo trabalho da montagem, que lida muito bem com os diferentes ritmos exigidos, sem abandonar uma espécie de balanço rítmico que permeia todo filme.



Fome de Viver é um fenomenal tributo de um diretor iniciante ao terror gótico (de uma forma bem diferente dos excessos estético-narrativos de um Del Toro). Poucos são os filmes que foram tão fortuitamente refrescantes na abordagem aos vampiros – até porque a maioria é adaptada de um certo livro que todo mundo já tá cansado de saber. Tudo de melhor que pode se esperar do subgênero está presente aqui em alto nível: a melancolia solitária da vida eterna, o espetáculo visual gótico, a elegância em oposição à qualquer tipo de vulgaridade, a sensualidade... Enfim, Fome de Viver é um verdadeiro achado.


NOTA (4/5)

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