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Cidade dos Sonhos (David Lynch, 2001)

GUILHERME W. MACHADO

A encenação é o estado natural do cinema, mas poucas vezes ela foi tão tensionada e explorada em diferentes camadas como em Cidade dos Sonhos. Antes de adentrar mais profundamente no texto, aviso que não é o propósito aqui o destrinchamento da história na busca por algum significado (se é isso que busca, leia meu artigo Explicação do Filme Cidade dos Sonhos); muito se fala sobre Cidade dos Sonhos e o status (surpreendentemente popular) de filme "indecifrável", "surreal", "propositalmente confuso", ou "de interpretação aberta", que esse adquiriu, embora ele seja, na verdade, um filme bastante coeso – de estrutura difícil, reconheço – na sua história, e certamente o mais compreensível da "Trilogia dos Sonhos" ou "Trilogia de Los Angeles" de Lynch, cujos outros dois são Estrada Perdida [1997] e Império dos Sonhos [2006]. De qualquer forma, o filme não será avaliado aqui por esses seus aspectos enigmáticos e sim nos seus méritos cinematográficos, que não deixam de envolver, evidentemente, porções significativas de sua trama.

Se Welles fez, em 1973, um dos filmes definitivos sobre a falsidade e a representação, intitulado F for Fake, e pouco depois, em 1976, Rivette fez um grande ensaio cênico sobre a luz e os espaços, o filmaço Duelo (uma Quarentena), Cidade dos Sonhos é como que uma combinação desses dois. Há todo um cuidado de Lynch com a encenação das diferentes realidades apresentadas. 3 grandes planos de ação envolvem o filme: o do mundo real, cru e feio; o do sonho, que distorce os elementos da realidade; e o da metalinguagem, que permeia ambos. O ponto de maior contato entre os três, e não à toa tido como momento seminal da obra, é a cena do Clube Silêncio, na qual Lynch deixa tudo bem claro: "não há banda, mas ainda sim se ouve a música", é tudo uma encenação. É tudo cinema.
O roteiro de Cidade dos Sonhos, também assinado por Lynch, chama atenção pelo cuidado meticuloso com os detalhes. É um filme que, para funcionar, conta com a precisão de um relógio. Muitos elementos da história vão sendo lançados, e retromencionados posteriormente, ao longo dos 147 minutos de duração, fazendo do filme um bom exercício de memória. São coisas pequenas, como um cinzeiro peculiar, diálogos aparentemente inofensivos e futuramente duplicados, ou nomes de personagens cambiáveis, que, no fim, compõem o sentido da história. Tudo, e poucas vezes essa palavra pôde ser usada de forma tão contundente, TUDO mostrado em Cidade dos Sonhos tem um sentido e, se guardado na memória, servirá como peça para uma compreensão mais profunda da trama mais adiante no filme. É muito fácil cair na armadilha de crer que há gratuidade nas escolhas de Lynch, mas a verdade é que Cidade dos Sonhos (diferentemente de, digamos, Império dos Sonhos) é uma história com início, meio e fim, como muitas outras, apenas não nessa ordem. Por trás de toda essa teia de tramas e simbologias complexamente amarradas, são traçadas ironias, sátiras até, do experiente diretor sobre o mundo de Hollywood e suas idiossincrasias.

Se o roteiro é o sólido alicerce para a construção de Cidade dos Sonhos, é na direção – e nas diversas funções técnicas que acompanham o processo de produção – que ele realmente ganha vida. O filme é um primor! Lynch faz uso de uma grande gama de recursos estéticos para dar o apoio visual necessário a sua história. Nos momentos em que a realidade ilusória do "sonho" vai ruindo, por exemplo, o diretor abandona a estabilidade de câmera presente até então para fazer uso da câmera de mão, mais desequilibrada. Passam a ser empregadas, ainda, mudanças focais drásticas, que desmascaram uma aparente realidade que não mais se sustenta. A edição – excelente, por sinal –  demonstra um dos mais conscientes usos da fusão (sobreposição de imagens entre planos diferentes) de que tenho memória, usando-a como elemento fundamental na construção da atmosfera de sonho, mais precisamente de pesadelo, que o filme carrega durante boa parte de sua duração. A fotografia, com suas belas nuances de iluminação, também desempenha um papel protagonista nessa composição atmosférica, que vai do sonho ao pesadelo. A combinação dessas competências resulta num filme completamente imersivo, denso, que suga o espectador e apenas o libera após o intenso final, atingindo-o como uma pancada na cabeça que permanecerá com ele por dias.
Cidade dos Sonhos é repleto de transformações, seja nas suas personagens principais, cujas identidades iniciais são radicalmente desconstruídas ao fim (novamente temos a encenação que não se sustenta em face da realidade), seja no seu tom, que absorve várias características dos ditos "cinemas de gênero". Lynch referencia quase todos gêneros tradicionais da antiga Hollywood: drama, comédia, noir, romance, musical e até o western (!), passeando habilmente entre eles sem nunca priorizar um a ponto de encaixar seu filme nos moldes dele. Voltando às personagens, destaque para Naomi Watts, que teve a sua carreira lançada com essa sua fantástica interpretação de uma personagem bastante complexa emocionalmente. Diane Selwyin (sim, esse é o nome) é, em última instância, uma vítima de Hollywood; uma sonhadora desgraçada pela própria busca do sonho. Fica, entretanto, uma questão para ponderação pessoal: foi o fracasso pessoal, na busca pelo estrelato, ou o fracasso romântico, em seu relacionamento com Camilla Rhodes, que levou Selwyin a seu trágico fim?


NOTA (5/5)

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