GUILHERME W. MACHADO
Incrível como, de um mesmo livro, Clouzot e Friedkin
fizeram filmes tão diferentes. O núcleo da história pode até ser o mesmo, mas
não passa disso. Pra quem não sabe, Comboio
do Medo [1977] é um remake do clássico francês O Salário do Medo [1953], de Henri-Georges Clouzot – que na época
surgia como um “novo mestre do suspense”, um Hitchcock francês. Enquanto em 1953
havia toda uma preocupação com um jogo de nuances sobre os personagens e os
passados que os levavam até ali, em 1977 Friedkin rasga tudo isso e estabelece
francamente um cinema de danação: não é a especulação que ele almeja, e sim a
essência de toda raiva e brutalidade envolvidas nesse processo de purgatório.
Se O Salário do
Medo é frequentemente acusado – e com certa justiça – por demorar muito
para chegar ao ponto (a travessia com os caminhões só começa com cerca de 1h30
de filme), Comboio do Medo passa
longe disso, partindo já de um violento prólogo mostrando os crimes que levaram
os 4 motoristas àquele fim do mundo. A principal razão para essa diferença está no
teor político, que na obra de Clouzot assume tons discursivos, e por isso a
introdução ocupa a maior parte do filme, enquanto no trabalho de Friedkin figura apenas como
pano de fundo, algo que permeia todo filme sem nunca tornar-se protagonista. E
não por isso um é menos profundo que o outro, pelo contrário, certas coisas são
melhores ditas em silêncio.
Comboio do Medo é um filme de ações, há todo um detalhamento do
processo físico que é herdado já do clássico francês, encontrando aqui toda
sinistra peculiaridade da direção de Friedkin – possivelmente sua melhor. A paisagem desértica de outrora é trocada pela chuvosa
floresta tropical, cenário pantanoso no qual o diretor, junto dos seus
diretores de fotografia, estabeleceu uma pegajosa atmosfera de podridão, um
verdadeiro inferno chuvoso. A natureza, em oposição à postura desenvolvimentista do homem,
desempenha papel fundamental, sendo nesse aspecto muito próximo do cinema do
alemão Werner Herzog, como Aguirre, a
Cólera dos Deuses [1972] ou Fitzcarraldo
[1982].
Tecnicamente, é um filme que não deixa a desejar ao clássico
mais popular do diretor: O Exorcista
[1973]. Apesar da diferença de abordagem ser bastante radical – sendo o
primeiro filme construído de forma mais “clássica”, enquanto esse deixa a raiva
e a brutalidade ditarem mais a sua mise-en-scène para um aspecto bem mais
moderno – são duas obras de imenso rigor estético. A montagem e a fotografia,
especialmente, brilham. O ritmo de cortes dá força aos detalhes tortuosos da
travessia, valorizando todo purgatório pelo qual passam os personagens e
potencializando o suspense a níveis próximos ao do clássico de 53 (que também
encontra em sua montagem um recurso vital para a eficiência da obra), embora a
preocupação de Friedkin aqui seja muito mais com as ações imediatas, coisa que
captura excepcionalmente bem, do que com a antecipação do que está por vir.
NOTA (4.5/5.0)
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