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Onibaba (&) Kuroneko (Kaneto Shindô, 1964/1968)

GUILHERME W. MACHADO

Decidi, contrariamente aos meus costumes, fazer uma crítica conjunta para essas duas notáveis obras do mestre japonês Kaneto Shindô. A verdade é que não o faço somente pelo fato de serem ambos os filmes do mesmo diretor, mas sim pela forma como as obras dialogam, não apenas de estilo, mas também em enredo. A meu ver, Kuroneko seria um aperfeiçoamento, em múltiplos aspectos que serão esclarecidos futuramente neste texto, dos princípios já presentes em Onibaba – A Mulher Demônio, que, além de seus méritos consideráveis, tem também o da originalidade.

Primeiramente quero apresentar algumas semelhanças entre as obras. Ambas são formadas por um triângulo principal de personagens envolvendo uma mãe, a nora e um homem interessado na nora. As duas mulheres principais matam samurais nos dois filmes, mudando apenas o motivo pelo qual o fazem. Nos dois está presente um conflito entre prazer x castigo/religiosidade, sendo que este sempre envolve a nora e seu amante. Em ambos filmes o núcleo da história se passa em locações remotas e isoladas. As duas histórias tem como pano de fundo a guerra civil japonesa. Isso tudo fora as semelhanças evidentes que são: mesmo diretor, gênero, atriz principal e alguns outros atores que também estão presentes nos dois filmes.
Mesmo com todas semelhanças, as duas obras não deixam de operar e dialogar entre si através de dualidades e distinções. Onibaba é visceral, carnal, seu terror é puro e por isso profundamente sombrio. Já Kuroneko é estilizado, misterioso, elegante, um terror que valoriza como poucos a atmosferização e a expressividade de cada imagem. Na forma como articulam o gênero, são, portanto, dois filmes bastante distintos (e dessa forma complementares), mesmo que no quadro geral tratem de muitos temas em comum. Onibaba é terror psicológico enquanto Kuroneko é claramente terror sobrenatural. Deixando de lado o aspecto de ser ou não fantasioso, a história de Kuroneko parece mais coerente com o que se espera do filme, além de ter sido melhor construída, em termos de cadenciamento, dentro de sua proposta. Onibabapor sua vez, desemboca na fantástica série de sequências finais, ficando a sensação de que a primeira uma hora de filme é uma preparação – importante eu sei, mas com problemas de dinâmica.

O que me leva aos finais. Por mais que os resultados das obras sejam semelhantes, com ambos filmes explorando uma sensação melancólica e abrupta sobre seus desfechos, eles significam coisas diferentes para suas obras. Onibaba, como já fora dito, é um filme absolutamente dependente do seu terceiro ato, é o que o significa e o que faz com que o filme fique marcado na cabeça do espectador por horas a fio, tamanho seu poder. Já Kuroneko, embora também muito bem acabado (com, inclusive, impacto semelhante), é menos dependente do quanto seu desfecho atingirá o espectador, pois todo desenrolar do filme, diferentemente do predecessor, não é construído como apenas uma ponte para o final, e sim como um caminho no qual a estrada é tão envolvente e interessante quanto o destino final.


Vimos que ambos filmes partem, essencialmente, de um ponto semelhante, divergem em abordagem e estilo no meio, e chegam a uma conclusão parecida. No fim, a combinação dos filmes não deixa de passar a impressão de uma espécie de estudo de Shindô sobre o gênero. Ele pegou dois plots quase idênticos e os trabalhou através de uma dualidade muito frequente: sobrenatural vs psicológico. A diferença é que, ao invés dessa dualidade existir num único filme – que seria o mais comum, filmes como O Iluminado e O Bebê de Rosemary, dentre tantos outros, o fazem – ele a separou em dois filmes e exerceu cada um dos lados em sua forma plena, extraindo tudo que podia dos mesmos. Cinema de primeira.


NOTA (4.5/5.0)

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