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Grandes Olhos (2014)

MATHEUS R.B. HENTSCHKE

Frequentemente se vê nos noticiários inúmeros casos de violência contra às mulheres. Esse número é tão espantoso que, em pesquisa realizada recentemente, 3 em cada 5 mulheres jovens disseram já ter sofrido algum tipo de violência. Contudo, a dúvida que perpassa a cabeça de quem ouve tais atrocidades ocorrerem é: “Por que essas mulheres, muitas vezes, não tomam uma atitude? Não se separam de seus maridos abusivos? Não denunciam tais agressores?” Nesse sentido, o mais novo trabalho do diretor Tim Burton (Ed Wood), Grandes Olhos, consegue trazer à tona tal debate, em uma obra que se diferencia muito do teor de seus filmes anteriores.

Baseado em fatos reais, Grandes Olhos retrata a vida de Margaret Keane (Amy Adams), pintora de quadros com meninas de olhos propositalmente desproporcionais, que começa a obter um gigantesco sucesso devido ao seu trabalho. No entanto, de forma passiva, vê seu marido Walter Keane (Christoph Waltz) se apropriar da autoria de tais obras e ganhar os créditos por elas. Com certeza, um dos grandes acertos do roteiro da película, que faz de Grandes Olhos possuir uma camada psicológica, é o de apresentar uma personagem feminina bem desenvolvida que, inicialmente, não é coagida fisicamente por seu marido a ceder aos seus mandos, mas sim numa construção psicologicamente complexa, Margaret Keane se faz uma pessoa incapaz de reagir, que como se estivesse em um estado vegetativo, não consegue se desvencilhar e romper a abusiva relação com seu marido, acabando por acatar a todos os seus pedidos que, paulatinamente, a diminui, a apequena.
Walter Keane, por sua vez, possui a habilidade de gerar em Margaret medo aliada a uma paradoxal sensação de empatia, como descrito na cena do tribunal em que Walter Keane em tom irônico se descreve como um “bon vivant” e, ao mesmo tempo, um selvagem para Margaret. Esse maléfico dom de Walter o faz capaz de prender e imobilizar sua mulher sem se utilizar de força física, em um primeiro momento, uma vez que ela já não poderia reagir por estar completamente envolvida nessa redoma de insegurança construída por seu marido. 
Essa dinâmica do roteiro funciona; entretanto, apesar de haver essa sólida construção dos personagens, dois fatores impedem Grandes Olhos de se destacar: um roteiro insípido e, infelizmente, Christoph Waltz. O roteiro até consegue desenvolver seus personagens, entretanto acaba por ser demasiadamente comercial, com soluções rápidas e com ausência de uma valorização maior de diálogos mais profundos. Talvez a explicação de tamanha sensação, de embutir em um filme com potencial para ser diferenciado a comercialidade para o grande público, esteja em uma possível política da Weinstein Company que na possível pretensão de ter seus filmes "Oscarizados" acaba por adotar tal prática, vista não só em Grandes Olhos, mas também em O Jogo da Imitação, que pertence a produtora também. Ambos, filmes com grande potencial, todavia que ficam em uma excessiva linearidade semelhante. Quanto ao outro agravante, é lastimável taxar Christoph Waltz como forçado e, por vezes ultrapassando a fronteira do popular termo: da canastrice. Contudo, o ator não permite margem para qualquer outro tipo de interpretação acerca de sua atuação, com um personagem caricato e que quase chega a prejudicar a sua parceira de cena e a verdadeira estrela do filme: Amy Adams.
Se muitos julgavam injusta a não indicação ao Oscar de Rene Russo, por Abutre, na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante, que atuou de maneira esquecível, agora sim há um real motivo para reclamações. Amy Adams, a grande injustiçada ao não receber uma indicação como Melhor Atriz. Sua personagem, Margaret Keane tem profundidade, camadas e passa por um notório processo de evolução durante a película. Um dos poucos fatores que tiram Grandes Olhos do trivial é a sua atuação, que ilustra com maestria a passagem de uma mulher incapaz de contra atacar às investidas do marido, mas que com o tempo, com a maturidade e com os longos anos de gradativa opressão consegue se reerguer, com o auxílio de pessoas e da religião e alçar um voo de liberdade nunca antes conquistado.

Para auxiliar essa grande atuação, Tim Burton desaparece e renasce. Desaparece com seu estilo carregado e cheio de maneirismos dos últimos tempos e renasce com uma direção diferente de seu natural que consegue fazer de um roteiro simplório, um filme visualmente lindo e que valoriza seus personagens, ainda que Christoph Waltz não tenha aproveitado a chance. Aliado a essa direção, a fotografia de Bruno Delbonnel é fantástica, com seus tons claros e sempre valorizando o azul, fazendo uma constante relação entre os olhos azuis de Margaret Keane e suas emoções no momento da cena. Quando a personagem goza de seus momentos de deslumbramento com o marido, os tons de azul aparecem claros, vívidos, enquanto quando Walter, transtornado pela bebida e pelas suas frustrações pessoais, tenta atacar Margaret e sua filha, os tons de azul se transformam em um tom sensivelmente mais escuro e tremulante.

Em suma, Grandes Olhos tem em todos os seus componentes atuantes a tentativa de fazer funcionar, de dar certo. Tim Burton e Amy Adams conseguem acertar o tom. Christoph Waltz e o roteiro de Scott Alexander e Larry Karaszewski não. Ainda assim, a película consegue atingir um patamar razoável, trazendo à tona um tema, infelizmente, sempre em voga: a violência contra as mulheres. Além disso, Amy Adams consegue trazer a vida uma personagem metaforicamente genial: assim como uma obra de arte pode ser interpretada de inúmeras maneiras, as obras de Margaret Keane podem ser vistas como uma alegoria de diferentes fases de sua vida, em que primeiro a criança e os grandes olhos apresentam sua versão assustada, incapaz de reagir, pequena e chocada perante os seus percalços da vida, mas que, com sua gradativa evolução, consegue se desvencilhar de suas amarras e aquela menina com grandes olhos nada mais é do que a metáfora de um mulher que, como uma menina, ganha sua liberdade, nascendo de novo com grandes olhos para com as novidades do porvir. 

  NOTA (7.5/10):

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