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Terror nas Trevas (Lucio Fulci, 1981)

GUILHERME W. MACHADO

O cinema, enquanto arte, sempre pôde ser visto como uma ferramenta de fuga da realidade, uma desconstrução da mesma. Terror das Trevas, considerado por muitos a obra prima do mestre Lucio Fulci, é um atestado de insanidade criativa, de puro terror que desafia qualquer lógica ou explicação. Por esse motivo, é muito difícil assisti-lo pela primeira vez, uma vez que, como espectadores, somos treinados à buscar cuidadosamente explicações para todos eventos e trazer uma dose, mínima que seja, de racionalidade para o filme que assistimos. Nessa obra, isso é impossível.

A história é tão crua que é necessário esforço para descrevê-la em mais de três linhas. Uma jovem, desprovida de qualquer bem (material ou mesmo espiritual) na sua vida, herda de um tio distante um antigo hotel. Na tentativa de reformá-lo para que ele pudesse ser reaberto, ela e as pessoas que a ajudam se deparam com um dos maiores pesadelos retratados no cinema: o hotel foi construído em cima de uma das 7 portas do inferno. A semi-inexistente trama do filme
 é, por incrível que pareça, uma proposta consciente do cinema de Fulci – proposta que nunca funcionou tão bem quanto nessa fase de sua carreira, entre 1979-1982  permitindo que como autor ele possa explorar todo absurdismo de seu material e se concentrar mais em passar sensações do que exercer qualquer tipo de lógica ou ideologia.

Por outro lado, é a quase completa ausência de preocupações com o enredo que faz com que a direção de Fulci brilhe com intensidade, e consiga, sem precisar se apoiar em mais nada (atuações, parte técnica, etc), sustentar a obra e propor uma bela experiência. Seus enquadramentos precisos, magnificamente bem construídos, e sua câmera econômica – em relação aos seus diretores semelhantes, como os mestres Dario Argento e Mario Bava – criam, com uma facilidade invejável, uma atmosfera única. A sensação de pesadelo é constante ao longo do filme, desde a ótima primeira cena quando vemos, numa perfeitamente utilizada fotografia de tom sépia (simulando um filme antigo), um grupo de cidadãos revoltados chegando de barco no hotel com instrumentos e motivação que lembram as inquisições católicas da idade média. Não há espaço para que o espectador descanse.


Terror nas Trevas, como o gore que é, tem como bengala o excesso de violência gráfica. Enquanto por um lado essa violência gera momentos memoráveis quando aliada aos criativos quadros de Fulci, por outro ela pode ultrapassar a barreira do medo e adentrar o perigoso território da repulsa, como em alguns momentos quando a montagem falha em dosá-la. A famosa cena das aranhas é um exemplo do excesso cometido, não pela força das imagens em si, mas pelo tempo desproporcional gasto para mostrá-las, cansando o espectador. Nesse ponto, Fulci diverge de Argento – quando se fala nessa brilhante geração de cineastas italianos de terror, é inevitável que haja muita comparação entre os mesmos – , pois embora ambos usem a violência visual em níveis semelhantes, o segundo nos mostra rápidas frações da mesma, o suficiente para fazer com que o espectador tema cada morte, enquanto Fulci valoriza a sua em demasia.
Terror nas Trevas é um terror no seu estado mais visceral, repleto de irregularidades, desde seu argumento até sua concepção, mas que consegue, ainda assim, se tornar uma experiência cinematográfica marcante. A atmosferização de Fulci, com sua cidadezinha enevoada e um conjunto de elementos bizarros, eleva a obra, que encontra seu auge no único grande acerto do roteiro: seu final.

NOTA (4/5)

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