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O Ano mais Violento (2014)




GUILHERME W. MACHADO

A cidade de Nova York, coberta pela neve e pela violência, se estabelece como um cenário improvável da luta pela vitória, pelo sucesso do “american dream”, de Abel Morales. É esse tipo de paradoxo que O Ano mais Violento explora ao longo de sua projeção. J.C Chandor (Margin Call, Até o Fim), um dos cineastas mais notáveis do momento, faz um trabalho de atmosferização invejável, alternando entre a hostilidade e a elegância dessa grande cidade neste ano de 1981, registrado como um de seus anos mais violentos.

 É incrível ver como O Ano mais Violento se desdobra progressivamente em várias camadas. Inicialmente é um filme cru e realista sobre o tão falado “american dream”; a trama avança, todavia, e o cineasta vai nos revelando a verdadeira face de seus personagens, fazendo de seu filme um atestado sobre a ambição e sobre a influência de fatores como família, origem, grupo social no indivíduo. Essas amarras sociais e culturais estão profundamente enraizadas no filme de Chandor, de tal forma que cada personagem, por mais coadjuvante que seja, carregue-as consigo. O filme evolui conforme essas amarras se apertam, sufocando cada personagem e empurrando-os aos seus inevitáveis destinos.

A análise que Chandor faz sobre o casal principal (Isaac e Chastain) revela bastante sobre diferentes facções da população americana. Isaac representa o imigrante que trabalha até o topo do “american dream”, Chastain, por sua vez, é filha de uma importante família de gangsters o que a faz carregar consigo, mais do que uma ambição por dinheiro, uma ambição por poder. Os dois personagens de Chandor refletem muito sobre suas origens em todos momentos do filme; sua construção foi tão magistral que todas informações sobre eles nos são dadas casualmente, e não jogadas na nossa cara, fazendo com que o espectador vá descobrindo a verdadeira face dos personagens no desenrolar da trama. Desnecessário dizer o quanto isso exigiu dos dois atores, que entregaram ótimos trabalhos, em composições contidas e detalhadas de seus personagens.
Com isso, O Ano mais Violento se faz extremamente enganador à primeira vista. A primeira cena, por exemplo, parece que o casal está fazendo / planejando algum tipo de atividade ilícita, quando nada disso está acontecendo. Isso é fruto da cuidadosa encenação de Chandor, mostrando como as aparências são, costumeiramente, enganosas. As revelações se dão de forma sutil, mas que passam uma mensagem clara. A cena do atropelamento do veado, por exemplo, nos evidencia a hesitação de Abel em agir sobre determinadas circunstâncias e a maior força – e até frieza –  de sua esposa Anna, virando nossas percepções sobre os personagens (enquanto antes ele parecia “disposto a qualquer coisa pelo sucesso” e ela mais passiva às vontades do marido).


Essas máscaras se estendem, de uma forma ou de outra, a todos personagens do filme, sendo cada um deles desmascarado (sempre sutilmente, sem reviravoltas novelescas) no decorrer do filme. Ninguém é o que aparenta à primeira vista, todos são mais (ou menos, em alguns casos) do que aparentam ser. As mudanças não são da água pro vinho, claro, apenas desvios de personalidades – principalmente sobre certas circunstâncias – que revelam o todo (psicológico) do personagem. Aqui a cidade de Nova York em si é praticamente um personagem no filme, uma vez que ela deixa de ser mero ambiente e passa a interferir de forma significativa nos fatos (a trama só poderia se desenrolar aqui e nesse tempo, não foi uma escolha casual de cidade apenas pela sua beleza ou praticidade). Chandor tira o máximo de estilização que a cidade pode lhe oferecer, fazendo de seu filme uma agradabilíssima experiência visual, sem grandes maneirismos ou estardalhaços técnicos, mas consistente ao longo de toda sua duração.

Toda parte técnica cumpre suas funções de forma tão sinérgica que fica difícil perceber o quão eficiente cada setor foi. Os maiores destaques ficam para a fotografia, que condiz perfeitamente com as imagens mostradas, dando o tom perfeito de iluminação e cor a cada cena, e para a montagem, que valoriza cada plano de Chandor e não acelera o rumo natural dos fatos, sendo ainda capaz - junto da sutil, porém envolvente, trilha sonora - de incutir a profundidade dramática e estética exigida por algumas cenas. Esse viés mais contemplativo, tão incomum no cinema americano atual, será provavelmente o porta-bandeiras da impopularidade do filme, taxado por alguns detratores de "lento" - sempre me pergunto por que alguns consideram isso, necessariamente, um defeito.
Se eu fosse escolher três substantivos para definir O Ano mais Violento, eles seriam: estilo, sutileza e profundidade. Que venham mais filme de J.C Chandor!


  NOTA (8.0/10):

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