GUILHERME W. MACHADO
Quando eu era criança eu
amava Matrix; totalmente viciado. O
mais curioso foi revê-lo depois de tantos anos e perceber que, por mais que eu
lembrasse de todos eventos – e mais, quase todas linhas de diálogo –, eu não tinha
pego, realmente, o espírito do que os irmãos (agora irmãs) Wachowskis
construíram. Não estou dizendo com isso que Matrix é um filme ultracomplexo e quem não gosta é por ignorância (sequer
sou muito chegado no excesso de blá blá blá filosófico do filme); digo apenas
que, quando criança, eu não tinha a bagagem de referências (me refiro às cinematográficas,
não filosóficas) necessárias para VER o
filme como ele era: um filme, um cativante exercício de manipulação da
realidade.
Matrix traça um dos mais radicais
– embora não o melhor – retratos de paranoia de virada do século (e olha que
isso foi um dos temas mais recorrentes na filmografia da segunda metade da
década de 90). Por mais difícil que seja para a minha geração lembrar, e pior ainda
para as próximas, era recém o comecinho da internet ali, ninguém
entendia como funcionava, era uma lógica alienígena, e foi assim ainda por uns
anos. Muitos filmes se aproveitaram bem dessa situação, destaco dois acima dos
demais: Pulse [2001] do mestre
Kiyoshi Kurasawa, e, claro, Matrix
[1999]. Quando eu digo radical, me refiro principalmente ao conceito do filme:
o de que a realidade pode ser ilusória. Sem contar ainda que leva toda aquela
ideia de “mecanização do corpo humano” já presente em Crash [1996], do Cronenberg, a novos limites.
É claro, tudo isso é
banhado naquela gigantesca pretensão filosófica já mencionada, mas é justamente
ai que eu discordo, ao mesmo tempo, dos haters e dos fãs de Matrix: não é o que mais importa na
obra, nem de longe. Eu percebia esse cunho do filme já lá atrás, quando era
mais novo. Tá, lógico que eu não sabia que envolvia o mito da Caverna do Platão
ou esse tipo de especificidade, mas dava pra pegar a ideia geral; isso ilustra
o quão direto (ok, na primeira assistida pode ser meio confuso, mas eu vi
dezenas de vezes) e não-tão-importante-assim acaba sendo tudo isso.
Muito mais do que o cunho messiânico,
ou que todo aquele pessimismo futurista (já padronizado atualmente), eu amo
como esse filme constantemente se questiona e quebra, continua e convictamente,
a sua aparente realidade. Um elaboradíssimo exercício de alto grau de
manipulação e forja, ao ponto em que até mesmo alguns personagens são capazes
de ditar regras sobre aquele universo criado. É um contundente filme sobre a
ilusão. De certa maneira, Morpheus lembra o escritor interpretado por John
Gielgud na obra-prima Providence
[1977], de Resnais, pois ele pode brincar com o seu universo ficcional a bel
prazer (nesse caso me refiro ao programa de treino, antes que me acusem de não
ter entendido nada).
OK, tudo isso é muito
legal, mas e o filme em si? Pra mim o primeiro
ato de Matrix é perfeição pura;
impecável em cada escolha e ainda muito poderoso hoje. Não tenho medo de
dizer – e eu realmente pensei sobre isso, não gosto de fazer esse tipo de
declaração de forma leviana – que o considero um dos melhores primeiros atos da
história do cinema. A forma como ele consegue se apresentar como uma realidade
surrealista (à primeira vista essa é a impressão), criar um mistério
verdadeiramente envolvente, estabelecer uma maravilhosa atmosfera de tons noir,
e ainda sustentar um cativante ritmo próximo ao de um thriller... Posso assistir esses primeiros 30 minutos
centenas de vezes e sempre ser muito envolvido por eles.
Se a essa altura você pensa
que eu sou só mais um fanboy, calma lá, tenho meus problemas com o filme também. Embora o primeiro
ato seja monumental, a ladeira só desce a partir daí (sendo o
clímax o momento mais brega e os últimos 5 segundos os mais
desnecessários). Não é que eu não goste do resto do filme, isso também não é
verdade, apenas o considero muito autoindulgente. Passa a focar
mais na “esperteza” de tudo e menos na atmosfera brilhantemente construída no
início.
Claro, não dá para ignorar
que essa parte conta com algumas sequências de ação não menos que memoráveis
(do tipo que hoje valem ouro). O problema é quando a pretensão –
que em condições normais eu não considero algo incômodo – começa a se sobrepor ao enredo, criando cenas ou diálogos desnecessários,
que mais servem para passar uma imagem de genialidade do que realmente
contribuir para a história, como aquele momento em que Neo está na sala de
espera do Oráculo, com as outras crianças. Ou mesmo como alguns dos diálogos
superexplicativos com Morpheus, que muitas vezes é tão sábio que acaba virando
um Oráculo ele mesmo. De qualquer forma, acho justo dizer que todo esse cunho
filosófico não é burro ou mal feito (suas referências são bem trabalhadas),
apenas excessivo na forma como consome uma imensa parte do filme.
Por outro lado (juro que
estou acabando), Matrix, embora seja
um filme bastante conceitual, não é puramente cerebral. Tem muitas coisas
cinematográficas a serem apreciadas aqui. É um filme que conta com uma direção
consideravelmente hábil (combina os elementos de uma estética neon com ação à lá John Woo, o que na época era bem moderno)
e é provido de uma noção de ritmo invejável, que mantém o nível de
entretenimento alto ao longo de toda duração – muito mérito da montagem
nisso. É muito divertido de se assistir, num conjunto geral.
Além disso, é uma obra
recheada de referências visuais, que combinam-se bem com as referências
temáticas do roteiro. Eu sou facilmente cativado por esses misturebas culturais
que fazem elementos extremamente diferentes funcionarem juntos de forma
orgânica. Vejamos, Matrix tem um pouco de: apocalipse; Alice no País das Maravilhas;
neo-noir; 1984; a Bíblia; body horror
(de novo o elo Cronenberg); Platão; grandes tiroteios; kung fu (estilo wing
chun?); Marx; e, finalmente, óculos de sol, muitos óculos de sol. Pode me
dizer o que quiser, sempre vou achar o estilo desse filme muito legal (embora
reconheça que seria extremamente brega se reproduzido hoje).
Enfim, eu entendo plenamente
não curtir Matrix, é um filme que se
impõe de uma maneira que pode ser irritante pra quem não é levado junto nessa
viajem. Apenas acho que é muito fácil simplesmente desconsiderá-lo como mais um
fenômeno popular e deixar por isso mesmo. Pode não ser tão “brilhante e revolucionário”
como os xiitas defendem, mas é um filme que não tem medo de ser radical na sua
proposta e que traz vários elementos interessantes e dignos de discussão com
isso.
NOTA (4/5)
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