GUILHERME W. MACHADO
Um filme complexo é, de certa forma, como a vida de um
homem: não pode ser definido em uma palavra. No caso de Cidadão Kane, nem mesmo muitas palavras resolveriam, e, como há uma
verdadeira abundância de textos sobre o mesmo na internet, prometo não me
alongar num prolixo exercício de repetição enfadonho. Não uma crítica
convencional, portanto, estruturei esse texto quase como um conjunto de
observações acerca de algumas passagens específicas do filme (texto com SPOILERS).
Cidadão
Kane, entre muitas outras coisas, é um dos maiores estudos
de personagem do cinema. Welles alia todos recursos a sua disposição, do texto
à imagem, para construir e explorar um dos personagens mais marcantes do
cinema. Já na primeira cena, por exemplo, quando a câmera nos revela os terrenos
silenciosos da suntuosa, porém decadente, Xanadu (residência de Kane), é
possível perceber o quão vazia é a vida daquele homem isolado no seu mundo
particular. Extremamente bem composta, com enquadramentos atmosféricos e ângulos de câmera criativos, que já estabelecem cedo o clima visual do filme, essa é uma das minhas cenas introdutórias preferidas do cinema.
“- He made an awful lot of money.
- Well, it's no trick to make a lot of money... if what you want to do is make a lot of money.”
O que mais me intriga em Cidadão Kane é que, mesmo ao final do filme, com toda abundância de
informações, não sabemos realmente quem foi Charles Foster Kane. Sim, temos a
versão da mídia, os depoimentos de muitos de seus conhecidos próximos, mas, de
fato, nada que realmente nos mostre quem foi esse homem tão falado, odiado e
amado. Exceto, talvez, por Rosebud: a única coisa que realmente sabemos sobre
ele em termos emocionais. O filme nos apresenta, portanto, a figura pública, o ser mítico, nunca o
lado mais íntimo e humano de Kane, que acaba sendo composto pela
individualidade perceptiva de quem assiste.
Fato é que todos os depoimentos ouvidos pelo repórter
– e, portanto, vistos por nós – vêm de pessoas que foram próximas de Kane, mas
que se afastaram dele ao longo dos anos. Cada uma dessas pessoas tem seus
sentimentos específicos por ele, tornando suas versões dos fatos completamente
parciais. Perceba que, conforme muda a pessoa que fala sobre Kane, o
protagonista do filme é apresentado com variações, às vezes bem sutis, de personalidade
ou postura, indo sempre de acordo com a visão do personagem que o retratava acerca
dele.
Em termos narrativos, Cidadão Kane é um triunfo. O que mais me chama atenção
nesse aspecto é que, logo nos primeiros minutos de filme, Welles faz, na forma
de um noticiário jornalístico, um resumo dos principais acontecimentos da vida de Charles Foster Kane, ou seja, dos eventos mais importantes do enredo do próprio filme. O domínio do autor sobre sua obra é tão grande que ele pode
entregar os maiores plot twists (vulgas reviravoltas) nos primeiros dez minutos
e ainda fazê-las envolventes ao longo da obra. A verdade é que com isso Welles já estabelece desde o início que o mais importante em seu filme não são as reviravoltas, ou os elementos da trama externa, e sim os elementos internos do personagem.
“I don't think there's one word that can describe a mens life.”
A direção de Welles, mesmo com toda sua estética
particular – os ângulos de câmera incomuns que viraram marca registrada do
diretor –, não busca imediatamente pela beleza (embora a encontre com
frequência), e sim pela melhor forma de contar a história visualmente. Um dos
casos mais evidentes é quando ele, após mostrar uma sucessão de cenas que
evidenciam o crescente esgotamento do casamento de Kane e Emily, atesta o fim
irremediável da relação num conjunto de planos em que mostra ambos sentados em
lados opostos da mesa no café da manhã: ela lê o Chronicle (jornal rival do de
Kane) enquanto ele lê o Inquirer (seu jornal). Nenhuma palavra é dita nesse
momento, não é necessário.
O próprio uso da profundidade de campo, que marcou tanto a carreira do genial diretor de fotografia Gregg Toland quando a do próprio Welles, não se dá apenas
por gosto, ou pela mera evolução da tecnologia. Essa proposta estética permitiu
que Welles não precisasse, como precisava a maioria dos diretores da época,
filmar muita cobertura (recorrer a mais close-ups que o necessário, ou mesmo ter
de decupar todos diálogos em plano-contra plano), podendo organizar seu filme numa
quantidade econômica de planos bem compostos. Algo que o mestre francês Jean
Renoir já vinha trabalhando durante a década de 30, mas que tomou novas
proporções, inclusive tecnológicas, a partir de Cidadão Kane.
Voltando ao personagem, o pouco que realmente sabemos
sobre Kane vem da palavra Rosebud, ou seja, de sua infância. Essa era a palavra
escrita no trenó em que brincava quando ainda morava com os pais (trenó que foi
substituído no mesmo ano por um novo e mais moderno quando ele é adotado pelo
banco). O que essa palavra representava, entretanto, é a inocência perdida por
Kane, a simplicidade que lhe foi arrancada junto com sua infância. Ao longo do
filme se tornou evidente que Kane comprava e colecionava tudo que era possível;
sua incalculável fortuna não podia, todavia, comprar-lhe o que mais queria:
Rosebud. Kane tentava preencher seu vazio comprando tudo ao seu alcance, apenas
para acabar sozinho e ainda mais isolado no meio de seu irrelevante montante de
pertences sem significado algum.
“- I don't know many people.
- I know too many people. I guess we're both lonely.”
NOTA (5/5)
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