Pular para o conteúdo principal

Creepy (Kiyoshi Kurosawa, 2016)

GUILHERME W. MACHADO

O terror vem de dentro. Retomando a cartilha de um dos seus filmes mais aclamados, Cure [1997], o mestre japonês Kiyoshi Kurosawa volta ao tema dos serial killers em Creepy [2016], depois de uma década longe do cinema de horror. Sou fã declarado do diretor, embora infelizmente ainda não tenha conseguido ver alguns de seus filmes, e o que chama mesmo atenção em seus trabalhos, acima dos enredos, que não fogem tanto assim dos padrões do gênero, é a peculiaridade de sua mise-en-scène, a forma diferenciada de como ele conduz suas histórias visualmente.

A paciente câmera de Kurosawa, com seus planos meticulosamente compostos, geralmente distantes e lentos, exerce uma atração hipnótica sobre mim. Vai na contramão de tudo que se vê nos filmes de terror ou nos thrillers contemporâneos, que cada vez mais apostam em câmera de mão e no fastidioso found footage (que ganhou ainda algum fôlego com o ótimo A Visita, do Shyamalan). Os artesãos do horror, como Roger Corman, Mario Bava ou John Carpenter, são uma espécie em extinção, as imagens não são mais um objeto de contemplação, seu caráter é mais imediatista e oportunista agora, um mero meio para conseguir mais sustos ou mostrar quão avançados são os efeitos de CGI que o cinema de horror dispõe atualmente. Em Kurosawa não.
Bom, chega de choradeira... Creepy. O conceito do filme – acusado por alguns de ser básico, coisa que não concordo –, além de altamente perturbador, é bastante curioso. Muito como em Cure, o mal figura aqui como algo passivo, uma figura provocadora que, num processo quase hipnótico, desperta o pior dentro dos outros e os utiliza nas suas atrocidades. O horror, portanto, vem de dentro das próprias vítimas, de dentro da típica família urbana japonesa. Não há como negar o quanto do filme conversa com os costumes locais, é a exemplar educação japonesa que diversas vezes impede que toda situação seja evitada com um pouco de grosseria – taí um serial killer que teria pouco sucesso aqui, não? – lembrando um pouco aquele momento do Millennium [2011] de Fincher, em que o protagonista, evitando fazer uma desfeita, entra na casa da pessoa que acredita ser um assassino.

[SPOILERS nesse parágrafo]
Dos fatores que mais me intrigam nesse enervante thriller – que, principalmente na reta final, chegou a causar insatisfações manifestadas em voz alta na minha sessão – é o singelo momento em que o (ex)detetive mostra a foto do serial killer para a moça cuja família foi assassinada 6 anos antes, e de modo semelhante, e essa enfatiza não ser esse o homem responsável pela morte de sua família. Estaria Kurosawa querendo demonstrar alegoricamente um mal, ou talvez apenas um costume, que, ao contrário de específico e isolado, poderia ser comum no Japão atual? Evidente que todo esse modus operandi do serial killer é uma fantasia elaborada, mas nada impede que a metáfora refira-se a outra coisa que não tenho a bagagem sociocultural para apontar (moro, afinal, a milhares de km de distância).
[Fim dos SPOILERS]

Há um desconforto sensorial magistralmente administrado em Creepy, uma sensação de problema iminente que se manifesta mesmo nos ambientes aparentemente tranquilos do filme. O vento é o suficiente para desestabilizar a calma na vizinhança, como se trouxesse uma coisa errada no ar. Há algo incômodo que ninguém ousa supor por um bom tempo; personagens recusam os indícios (afinal, qual a probabilidade?) e seguem o estranho suspeito por um sinistro corredor que certamente não dá para a cozinha, ou para o quarto de dormir.
Creepy pode até ser um “Kurosawa menor”, e muito disso deve-se não aos méritos e deméritos do filme em si, e sim ao fato de ele encontrar um predecessor – com o qual guarda mais semelhanças do que o acaso permite – na filmografia do próprio cineasta, mas é ainda um ótimo filme num gênero cansado. A forma de filmar do diretor é suficiente para destacá-lo sobre a maioria, mesmo num filme em que ele se permitiu algumas liberdades que fogem um pouco do seu estilo habitual.

NOTA (4/5)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Explicação do Final de Birdman

 (Contém Spoilers)                                            TEXTO DE: Matheus R. B. Hentschke    Se inúmeras vezes eu julguei Birdman como pretensioso, terei de ser justo e dizer o mesmo de mim, uma vez que tentar explicar o final de uma obra aberta se encaixa perfeitamente em tal categoria. Entretanto, tentarei faze-lo apenas a título de opinião e com a finalidade de gerar discussões acerca do mesmo e não definir com exatidão o que Iñarritu pretendia com seu final. 

Interpretação do Filme Estrada Perdida (Lost Highway, 1997)

GUILHERME W. MACHADO Primeiramente, gostaria de deixar claro que A Estrada Perdida [1997], como muitos filmes de David Lynch, é uma obra tão rica em simbolismos e com uma narrativa tão intrincada que não é adequado afirmar tê-la compreendido por completo. Ao contrário de um deturpado senso comum, entretanto, creio que essas obras (aqui também se encaixa o mais conhecido Cidade dos Sonhos ) possuem sentido e que não são apenas plataformas nas quais o diretor simplesmente despeja simbolismos para que se conectem por conta própria no acaso da mente do espectador. Há filmes que mais claramente – ainda que não tão ao extremo quanto dito, pois não existe verdadeira gratuidade na arte – optam pela multiplicidade interpretativa, como 2001: Uma Odisseia no Espaço [1968] e Ano Passado em Marienbad [1961], por exemplo. Não acredito ser o caso dos filmes de Lynch, nos quais é possível encontrar (mediante um esforço do espectador de juntar os fragmentos disponíveis e interpretá-los) en

10 Giallos Preferidos (Especial Halloween)

GUILHERME W. MACHADO Então, pra manter a tradição do blog de lançar uma lista temática de terror a cada novo Halloween ( confira aqui a do ano passado ), fico em 2017 com o top de um dos meus subgêneros favoritos: o Giallo. Pra quem não tá familiarizado com o nome  –  e certamente muito do grande público consumidor de terror ainda é alheio à existência dessas pérolas  –  explico rapidamente no parágrafo abaixo, mas sem aprofundar muito, pois não é o propósito aqui fazer um artigo sobre o estilo. Seja para já apreciadores ou para os que nunca sequer ouviram falar, deixo o Giallo como minha recomendação para esse Halloween, frisando  –  para os que torcem o nariz  –  que essa escola de italianos serviu como referência e inspiração para muitos dos que viriam a ser os maiores diretores do terror americano, como John Carpenter, Wes Craven, Tobe Hooper, e até diretores fora do gênero, como Brian De Palma e Quentin Tarantino.