Pular para o conteúdo principal

Sully (Clint Eastwood, 2016)

GUILHERME W. MACHADO

Mais 40 anos de experiência deram ao piloto Sully a bagagem necessária para operar o seu “milagre” – como foi proclamado – no rio Hudson no auge do inverno de 2009 em Nova York. Quase os mesmos 40 e poucos anos de experiência em direção que permitiram a Clint Eastwood confeccionar seu filme mais enxuto (não apenas por ser um dos menores de sua carreira) e preciso. Sully é mesmo, seja no seu enredo ou na execução, um filme de precisão glacial, com um mínimo de floreios. O problema é que toda essa concisão, que, garanto, foi meticulosamente articulada, faz com que o filme pareça simplório ao olhar de alguns.

A frieza de uma Nova York em suas primeiras semanas de janeiro (inverno pesado) é a mesma frieza emocional do piloto-título na situação de maior pressão imaginável em sua profissão, e a mesma também aplicada por Clint no retrato objetivo desse evento. Porque o filme é mesmo sobre pouco menos de 5 minutos de ação que são repetidos, discutidos, reencenados e reimaginados ao longo de 96 minutos de filme. Não são os 40 anos de profissão, muito menos a história de vida dessa figura heroica americana, que estão em análise; são 208 segundos, e suas consequências.
Há  todo um paralelo, difícil de sonegar num texto desses, com o trabalho recente de Eastwood na desconstrução de figuras americanas tidas como heroicas, mas que são, na verdade, humanos, com seus próprios problemas e vidas pessoais, cumprindo (bem, mal, alienadamente, seja da maneira que for) suas funções/trabalhos. J. Edgar (2011), filme mais fraco dessa fase, é o primeiro, seguido do mais profundo e ambicioso Sniper Americano (2014) e agora por esse Sully (2016), que é o mais distante e isento dos três. São, na verdade, obras que se completam, e juntas oferecem um retrato notável não apenas do heróis estadunidenses, mas do próprio país como nação. Tanto a mídia quanto o corporativismo presentes em Sully, por exemplo, não deixam de ser parte de um comentário social, que, por mais que penda ao patriotismo – e algumas passagens não negam isso –, revela também os percalços do sistema.

Por mais fria que seja a execução de Sully, irrompe ainda a humanidade típica dos filmes do diretor. Muito como em Hawks – diretor ao qual Clint é frequentemente comparado – é a interação humana o centro da obra, e não as questões que envolvem a máquina (bem diferente de, sei lá, um J.J Abrams). Não apenas o esforço piloto/copiloto está em questão, mas também o de toda equipe de voo na evacuação, dos 1200 oficiais nova-iorquinos envolvidos de alguma forma no resgate dos passageiros no rio, e daí por diante.
As  cenas de avião são homeopaticamente distribuídas ao longo do filme, mas são de um realismo palpável. Não há todo exibicionismo circense de um Robert Zemmeckis, mas Eastwood fez um bom trabalho nos colocando naquela situação com os pilotos e demonstrando claramente para nós, leigos, de quantas formas tudo poderia ter dado tragicamente errado, sem para isso precisar tornar-se didático sobre as questões técnicas de aviação (tudo é sobre o ser humano). A montagem brilha nessa (re)construção episódica desse breve acontecimento e merece (como o próprio filme) ser reconhecida nas premiações, que ainda não decidiram se vão abraçar o filme ou ignorá-lo por completo.

NOTA (4/5)

Comentários

  1. Muito boa crítica, eu gostei do seu texto, sua análise é muito inteligente. Eu gostei do filme. Acho que os filmes de Clint Eastwood são cheios do seu estilo, e logo se pode identificar quem esta responsável pela direção. Faz pouco tempo que vi o filme Sully e fiquei encantado, esta muito bem feito e muitas das cenas que fazem são ótimas. Além, desfrutei muito deste filme pelo bom enredo e narrativa. Considero que a historia foi bem narrada pelo diretor. Acho que é um dos melhores filmes feito por ele.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Explicação do Final de Birdman

 (Contém Spoilers)                                            TEXTO DE: Matheus R. B. Hentschke    Se inúmeras vezes eu julguei Birdman como pretensioso, terei de ser justo e dizer o mesmo de mim, uma vez que tentar explicar o final de uma obra aberta se encaixa perfeitamente em tal categoria. Entretanto, tentarei faze-lo apenas a título de opinião e com a finalidade de gerar discussões acerca do mesmo e não definir com exatidão o que Iñarritu pretendia com seu final. 

Interpretação do Filme Estrada Perdida (Lost Highway, 1997)

GUILHERME W. MACHADO Primeiramente, gostaria de deixar claro que A Estrada Perdida [1997], como muitos filmes de David Lynch, é uma obra tão rica em simbolismos e com uma narrativa tão intrincada que não é adequado afirmar tê-la compreendido por completo. Ao contrário de um deturpado senso comum, entretanto, creio que essas obras (aqui também se encaixa o mais conhecido Cidade dos Sonhos ) possuem sentido e que não são apenas plataformas nas quais o diretor simplesmente despeja simbolismos para que se conectem por conta própria no acaso da mente do espectador. Há filmes que mais claramente – ainda que não tão ao extremo quanto dito, pois não existe verdadeira gratuidade na arte – optam pela multiplicidade interpretativa, como 2001: Uma Odisseia no Espaço [1968] e Ano Passado em Marienbad [1961], por exemplo. Não acredito ser o caso dos filmes de Lynch, nos quais é possível encontrar (mediante um esforço do espectador de juntar os fragmentos disponíveis e interpretá-los) en

10 Giallos Preferidos (Especial Halloween)

GUILHERME W. MACHADO Então, pra manter a tradição do blog de lançar uma lista temática de terror a cada novo Halloween ( confira aqui a do ano passado ), fico em 2017 com o top de um dos meus subgêneros favoritos: o Giallo. Pra quem não tá familiarizado com o nome  –  e certamente muito do grande público consumidor de terror ainda é alheio à existência dessas pérolas  –  explico rapidamente no parágrafo abaixo, mas sem aprofundar muito, pois não é o propósito aqui fazer um artigo sobre o estilo. Seja para já apreciadores ou para os que nunca sequer ouviram falar, deixo o Giallo como minha recomendação para esse Halloween, frisando  –  para os que torcem o nariz  –  que essa escola de italianos serviu como referência e inspiração para muitos dos que viriam a ser os maiores diretores do terror americano, como John Carpenter, Wes Craven, Tobe Hooper, e até diretores fora do gênero, como Brian De Palma e Quentin Tarantino.