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Trama Fantasma (Paul Thomas Anderson, 2017)

GUILHERME W. MACHADO

Por mais que ainda seja um filme sobre obsessões, Trama Fantasma quebra com o ciclo recente no cinema de PTA de filmes sobre a história americana, como eram os casos de Sangue Negro (2007), O Mestre (2012) e Vício Inerente (2014). E embora o próprio Anderson tenha traçado em entrevistas o paralelo de seu novo filme com Rebecca (1940), não consigo evitar enxergar um pouco mais de Vertigo (1958) nele: o homem que obsessivamente tenta reconfigurar a personalidade da mulher através do figurino.

Bizarramente, a obsessão e intensidade com a qual o personagem de Reynolds mergulha no seu trabalho não é tão diferente assim da do ator que o representa. Há algumas décadas já que tornou-se célebre o processo de preparação de Day-Lewis para seus papéis e, de fato, é difícil que haja algum outro ator ou atriz com uma composição de personagem mais cuidadosa que a dele. Se o paralelo ator-personagem foi algo que PTA buscou não posso afirmar seguramente – até acredito que sim, pois é um dos diretores com melhor visão para casting no cinema americano atual –, mas no mínimo é um caso de hábil utilização de uma persona pública como forma de adicionar camadas ao personagem. Parecido, por exemplo, com o casting de Kristen Stewart em Acima das Nuvens (2014).
São alguns os elementos que operam em Trama Fantasma para que o filme seja tão misteriosamente envolvente, mas o principal parece ter sido a forma como ele foi articulado numa estrutura contida de jogos de poder. As ações são mínimas (como é o caso em geral dos grandes dramas de época), assim como os cenários (que não são muitos), mas cada gesto do trio principal de personagens significa muito na forma como eles constantemente tentam dominar uns aos outros. E não sei se é impressão minha – apenas uma revisão dirá ao certo – mas parece ser Lesley Manville a força maior, justamente pela parcimônia com a qual decide exercê-la, enquanto os outros dois, Day-Lewis e Krieps, estão numa batalha mais franca pela sujeição do outro. Em qualquer caso, as três atuações são realmente poderosas.

É como se Anderson tivesse partido das questões conjugais que trabalhou em O Mestre, com Hoffman e Adams, mas que ali estavam em segundo plano, e as trouxe para o centro, com uma personagem feminina ainda mais determinada. O ritmo é lento o suficiente para que entremos nesse vórtice de orgulho e depreciação e para que acompanhemos a transição gradual do fascínio para a obsessão (de um pelo outro e vice-versa). Interessante é que parece que em princípio Alma (Krieps) era atraída pelo trabalho de Reynolds (Day-Lewis), enquanto esse era atraído pela possibilidade de transformação que ela carregava. Essa dinâmica foi se adaptando e eles foram encontrando novas formas de atrair um ao outro, até tornarem-se, através dos meios que fossem, uma necessidade.
As articulações formais de PTA – geralmente interessantes – apresentam-se de forma mais madura nesse filme do que qualquer outro seu. Já faz algum tempo que sua preocupação passa cada vez menos a ser a do plano sequência mirabolante (Boogie Nights e Magnólia) para ser as das ricas tonalidades de cor e artefatos visuais (flares, ruídos, haze, etc) que o domínio que tem da técnica (lentes, luzes) e do celuloide o proporciona. Em Trama Fantasma ele faz um excelente trabalho em encontrar pontos específicos de desequilíbrio (como os planos no carro) em meio a uma ambientação estética tão cuidadosamente balanceada na iluminação e encenação.

Dentre os restantes puristas da película em Hollywood, Anderson é um dos poucos que realmente explora as características do filme que não podem ser simuladas com mesmo efeito no digital.

NOTA (4/5)

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