Pular para o conteúdo principal

O Grande Hotel Budapeste (Wes Anderson, 2014)


GUILHERME W. MACHADO
  
O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto. (PESSOA, Fernando)
Os livros de história documentam os eventos do passado, guerras, tratados, leis e civilizações; apenas a arte, todavia, é capaz de dar vida a esses elementos, traduzindo-os numa comunidade viva, com todos seus charmes e idiossincrasias. O Grande Hotel Budapeste é um filme sobre a passagem do tempo, sobre a mudança de eras. Wes Anderson adota um olhar nostálgico na criação dessa sua cativante fábula sobre a Europa nos anos 30, em contraposição ao olhar mais decadente para a mesma nos anos 60 e nos tempos atuais. O próprio tempo que provém o charme a uma época passada, uma vez que só se pode adotar um olhar saudosista sobre o que já passou, desvirtua-nos do mesmo, inevitavelmente.


O Grande Hotel Budapeste tem sua história desmembrada em três momentos históricos: dos anos 85 até o presente, sendo as primeiras cenas, a do cemitério e o monólogo do escritor velho (Tom Wilkinson); os anos 60, período no qual o escritor, interpretado por Jude Law, está no hotel e encontra Zero Moustafa (F. Murray Abraham); e os anos 30, que é a maior parte do filme, onde são contadas as desventuras de M. Gustave (Ralph Fiennes). A consciência de Anderson sobre seu próprio material é tão grande que suas escolhas estéticas refletem seus períodos históricos e a própria visão do autor sobre os mesmos. Enquanto os anos 30 são filmados num enquadramento de 1.37:1 (tela quadrada), os anos 60 são filmados em 2.35:1 e os tempos atuais (da metade dos anos 80 pra cá) em 1.85:1. As mudanças de enquadramento representam toda uma mudança ótica e de perspectiva de uma época sobre a outra, e são aliadas às alterações do design de produção e da fotografia, que criam um mundo mais exuberante na era mais antiga e uma versão mais decadente e antiquada do mesmo nas duas subsequentes.

O tempo e sua inexorabilidade estão presentes durante toda extensão do filme. Como no diálogo entre Moustafa e o escritor, no qual o primeiro aponta que seu concierge não é “de primeira, nem mesmo de segunda”, completando então com o dizer: “os tempos mudaram”. O quadro “O Menino com a Maçã”, que era tão valioso numa época, viu seu valor decair com o passar do tempo e acabou como um mero quadro de recepção de hotel. A última viajem de trem de M. Gustave, filmada em preto e branco, simbolizando uma radical mudança histórico-temporal em relação à primeira. O detalhista roteiro de Anderson, que num olhar mais descuidado poderia parecer focado na comédia e desprovido de conteúdo, consegue desenvolver suas temáticas sem pesá-las demais sobre a trama, fazendo com que seu filme seja tão envolvente quanto profundo.
Sem abrir mão de sua misé-en-scene particular e de seu tom fabulesco, Wes Anderson retrata, no seu colorido universo paralelo, de forma brilhante a complicada situação europeia à margem da segunda guerra. A abordagem humorística não diminuí em nada a relevância dos eventos, mas possibilita a uma representação incrivelmente divertida de uma época completamente dramática. O curioso é que O Grande Hotel Budapeste consegue desenvolver um conteúdo dramático sem jamais ser pesado, nem nunca o infantilizando. Quando se olha por trás das piadas e da encenação exuberante da Anderson, quase todos eventos da história são trágicos, nada romantizados (sendo romântica apenas a narrativa, não os fatos).

Semelhante ao que Michael Curtiz fez em Casablanca (1942), Anderson consegue explorar uma vasta gama de gêneros dentro de O Grande Hotel Budapeste, destrinchando seus clichês e utilizando-os a seu favor num ímpeto criativo invejável. O filme possui violência, humor, tiroteio, perseguições, drama, prisão, romance, retrato histórico, sendo eficiente em absolutamente tudo o que se propõe. Todos elementos são bem desenvolvidos e utilizados em prol da obra, com  inteligentes ironizações acerca dos vícios narrativos de cada gênero (através das constantes quebras climáticas de Anderson, nas quais ele utiliza os clichês numa espécie de ridicularização, resultando em cenas extremamente engraçadas).

É impossível não creditar méritos à excepcional parte técnica do filme, que consegue a rara façanha de realmente contribuir para a história, não sendo apenas um espetáculo visual – o que, por si só, já seria um mérito. Como já disse anteriormente, o design de produção e a fotografia ajudaram a estabelecer o ponto de vista de Anderson sobre as diferentes épocas nas quais o filme se passa. A excelente trilha sonora de Alexander Desplat (Árvore da Vida, A Pele de Vênus) completa o que é dito pelas imagens, sendo essencial para o sucesso de Anderson na sua vasta mistura de gêneros.

O elenco é, possivelmente, o maior da década (até agora) em termos de acúmulo de nomes famosos. A maioria deles tem pouco tempo em cena, sendo coadjuvantes de luxo que compõe a odisseia do protagonista; todos eles têm, entretanto, bons trabalhos e caracterizam perfeitamente seus personagens e os estereótipos – coisa com a qual Wes Anderson sempre adorou brincar ao longo de sua carreira – que eles representam. Destaque, no âmbito dos coadjuvantes, para Adrien Brody, ótimo no estereótipo do aristocrata-vilão-filho-aproveitador. Ralph Fiennes, o único que tem bastante espaço no filme, tem uma atuação espetacular, que concorre fortemente para ser a melhor atuação masculina do ano. M. Gustave é um peculiar e cativante protagonista que simboliza todos os valores perdidos de uma geração anterior até mesmo à sua. A composição sutil desse difícil personagem, tanto por parte de Fiennes quanto do próprio Anderson na criação do mesmo no roteiro, é fantástica. O ator acentua todo charme e idiossincrias de papel numa atuação detalhista, dando um show em tudo, da comédia ao drama.

O Grande Hotel Budapeste é uma nostálgica e deliciosa viagem no tempo, que transborda criatividade e originalidade em todos os momentos. Essa fabulosa reciclagem de Anderson, que extrai elementos característicos e até antiquados de vários gêneros cinematográficos para unificá-los em algo completamente novo, resulta numa obra completa e irresistível. Tudo é cuidadosamente planejado e filmado pelos milimétricos e engenhosos enquadramentos de Anderson, que conduz sua obra com uma graciosidade apenas atingível por um mestre consciente de sua arte e de seus objetivos. O melhor filme do ano.


NOTA (4.5/5.0)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Explicação do Final de Birdman

 (Contém Spoilers)                                            TEXTO DE: Matheus R. B. Hentschke    Se inúmeras vezes eu julguei Birdman como pretensioso, terei de ser justo e dizer o mesmo de mim, uma vez que tentar explicar o final de uma obra aberta se encaixa perfeitamente em tal categoria. Entretanto, tentarei faze-lo apenas a título de opinião e com a finalidade de gerar discussões acerca do mesmo e não definir com exatidão o que Iñarritu pretendia com seu final. 

Interpretação do Filme Estrada Perdida (Lost Highway, 1997)

GUILHERME W. MACHADO Primeiramente, gostaria de deixar claro que A Estrada Perdida [1997], como muitos filmes de David Lynch, é uma obra tão rica em simbolismos e com uma narrativa tão intrincada que não é adequado afirmar tê-la compreendido por completo. Ao contrário de um deturpado senso comum, entretanto, creio que essas obras (aqui também se encaixa o mais conhecido Cidade dos Sonhos ) possuem sentido e que não são apenas plataformas nas quais o diretor simplesmente despeja simbolismos para que se conectem por conta própria no acaso da mente do espectador. Há filmes que mais claramente – ainda que não tão ao extremo quanto dito, pois não existe verdadeira gratuidade na arte – optam pela multiplicidade interpretativa, como 2001: Uma Odisseia no Espaço [1968] e Ano Passado em Marienbad [1961], por exemplo. Não acredito ser o caso dos filmes de Lynch, nos quais é possível encontrar (mediante um esforço do espectador de juntar os fragmentos disponíveis e interpretá-los) en

10 Giallos Preferidos (Especial Halloween)

GUILHERME W. MACHADO Então, pra manter a tradição do blog de lançar uma lista temática de terror a cada novo Halloween ( confira aqui a do ano passado ), fico em 2017 com o top de um dos meus subgêneros favoritos: o Giallo. Pra quem não tá familiarizado com o nome  –  e certamente muito do grande público consumidor de terror ainda é alheio à existência dessas pérolas  –  explico rapidamente no parágrafo abaixo, mas sem aprofundar muito, pois não é o propósito aqui fazer um artigo sobre o estilo. Seja para já apreciadores ou para os que nunca sequer ouviram falar, deixo o Giallo como minha recomendação para esse Halloween, frisando  –  para os que torcem o nariz  –  que essa escola de italianos serviu como referência e inspiração para muitos dos que viriam a ser os maiores diretores do terror americano, como John Carpenter, Wes Craven, Tobe Hooper, e até diretores fora do gênero, como Brian De Palma e Quentin Tarantino.