GUILHERME W. MACHADO
É louvável como Martin Scorsese conseguiu, principalmente no início de sua carreira, se equilibrar entre o cinema europeu "autoral" (não gosto muito da determinação, mas a uso na ausência de uma descrição mais clara), com claras influências da Nouvelle Vague francesa, e o cinema moderno americano, com clara influência do lendário John Cassavetes, o qual ele ajudou a moldar. Quem Bate à Minha Porta? [1969], Caminhos Perigosos [1973], Taxi Driver [1976], e Touro Indomável [1980] são alguns exemplos de filmes que ficaram no meio termo desses dois modos, antes totalmente opostos, mas que começavam a convergir de forma interessante a partir dos anos 70, de fazer cinema. Tido por muitos como a obra prima definitiva de Scorsese, Touro Indomável certamente é um marco no cinema americano e um filme de enorme influência.
O mais interessante, a meu ver, é como Scorsese consegue fugir do estereótipo de filmes esportivos, até porque esse não é um filme sobre boxe, mas um filme que envolve um boxeador. A ausência de termos técnicos, à exceção do estritamente necessário, e de estratégias desse esporte durante o filme evidencia isso. Touro Indomável é um filme sobre um homem de origem humilde, que cresceu num meio brutal, e que encontra no boxe não apenas um meio de aliviar sua fúria e aplacar suas tendências masoquistas, mas também um meio ascender na vida e sair daquele bairro miserável.
A complexidade do personagem de De Niro é sensacional, a grande arma do filme. A cada vez que se assiste a obra entende-se mais sobre esse homem criado na tela. Nesse caso, como deveria ser sempre, a criação do personagem cinematográfico ultrapassa a mera imitação da pessoa real. Scorsese e De Niro fizeram um filme baseado em Jake La Motta, mas foram muito além disso, eles deram vida a um outro homem que existe somente nas telas. Para tal façanha, ator e diretor se confinaram num hotel numa praia e ficaram por dias criando, não apenas o roteiro definitivo do filme (que, na verdade, foi feito por eles nessa ocasião), mas toda a vida desse boxeador. É tão claro que eles não se prenderam estritamente ao personagem real que chegaram a mudar algumas de suas citações e referências do seu “stand up comedy”, para que ficassem mais fieis ao filme. É o perfeito exemplo da realidade se modificando em prol da arte.
Desnecessário dizer que De Niro está sobrenatural, mas o farei de qualquer forma. Quando eu achava que, após ver Taxi Driver [1976] e O Poderoso Chefão II [1974], nunca veria algo melhor dele, dou de cara com esse trabalho soberbo. Uma de minhas atuações favoritas. Toda caracterização, todos os problemas e toda raiva do personagem são transparecidos com uma naturalidade inacreditável. Sem necessitar de explicações (flashbacks da infância ou diálogos psicológicos) conseguimos entender o personagem de Jake La Motta, um homem totalmente inseguro sexualmente, muito paranoico e em extremo conflito consigo, como vemos nas lutas, nas quais são mostradas suas tendências masoquistas. Temos a sensação durante as lutas que La Motta, em certos momentos, deixa seus adversários o massacrarem com uma série de golpes, chegando inclusive a baixar os braços. Ele aguenta essas sequencias sem cair sequer uma vez, porque ele sente que merece.
A montagem - de Thelma Schoonmaker, que tem parceria com Scorsese há mais de 30 anos e é uma das melhores montadoras da história dessa arte - e a fotografia são nada menos que brilhantes, principalmente nas cenas de boxe, onde são mais exigidas. Scorsese filmou de forma brilhante e brutal suas lutas, alternando entre movimentos rápidos e câmera lenta, em conjunto da montagem apuradíssima, criando momentos de pura inspiração. O diretor chegou, inclusive, a mudar os tamanhos dos ringues de acordo com sua necessidade cênica. A iluminação é perfeita e de uma nitidez apurada. A trilha sonora, assim como a sonoplastia das arenas de boxe (gritos enlouquecidos das multidões) se encarregam de criar o clima. Tudo em tão perfeita sintonia que fazem com que Rocky, Um Lutador [1976] pareça trabalho de criança.
A montagem - de Thelma Schoonmaker, que tem parceria com Scorsese há mais de 30 anos e é uma das melhores montadoras da história dessa arte - e a fotografia são nada menos que brilhantes, principalmente nas cenas de boxe, onde são mais exigidas. Scorsese filmou de forma brilhante e brutal suas lutas, alternando entre movimentos rápidos e câmera lenta, em conjunto da montagem apuradíssima, criando momentos de pura inspiração. O diretor chegou, inclusive, a mudar os tamanhos dos ringues de acordo com sua necessidade cênica. A iluminação é perfeita e de uma nitidez apurada. A trilha sonora, assim como a sonoplastia das arenas de boxe (gritos enlouquecidos das multidões) se encarregam de criar o clima. Tudo em tão perfeita sintonia que fazem com que Rocky, Um Lutador [1976] pareça trabalho de criança.
Sobre a última luta contra Sugar Ray: uma cena lendária! Primorosa em toda sua concepção. Scorsese já admitiu em entrevistas ser ela baseada livremente na icônica cena do chuveiro de Psicose [1960], tendo adotado o mesmo estilo de montagem, alternando entre golpes rápidos de forma frenética, quase toda em close-ups, seguindo o ritmo imposto pela trilha sonora (no caso, dos efeitos sonoros). Martin Scorsese exerce aqui todo domínio que tem sobre sua arte [o cinema] e seus recursos, fazendo uso impecável dos mesmos para criar uma das cenas mais atmosféricas e brilhantemente executadas já feitas. A imersão é tamanha que nos sentimos dentro do ringue, como se estivéssemos tomando os golpes junto de La Motta.
Joe Pesci, por sua vez, sai como o grande injustiçado da obra e raramente é comentado. O ator, extremamente instável ao longo de sua carreira, faz aqui a sua melhor atuação. Em termos de Oscar o filme inteiro foi injustiçado - menos De Niro e Schoonmaker, que eram demasiadamente inegáveis -, em detrimento do não mais do que competente Gente como a Gente [1980], mas para isso já estamos anestesiados...
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