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Festim Diabólico (Alfred Hitchcock, 1948)

G.W. MACHADO

Não deve ter precisado de muito para convencer Hitchcock a fazer Festim Diabólico. Essencialmente, é um filme sobre assassinato; mais do que isso, sobre a própria filosofia do assassinato. Como se não bastasse, ainda vinha acompanhado com o atrativo do desafio que era filmar num espaço bastante limitado, em tempo real (aspecto fundamental que já vinha com a peça) e manter a dinâmica necessária para um filme de suspense. Parece claro até hoje que era um projeto condenado: um "teatro filmado", pretensamente intelectualizado, marcado pelo ego de um diretor que na época estava mais preocupado em transformá-lo num projeto de vaidade. Tudo isso serve para nos mostrar o quão pouco valem nossos exercícios de antecipação, e que o cinema é realmente uma arte de combinações improváveis.

Festim Diabólico, mais do que um brilhante exercício técnico, é um filme sobre a maldade. Sua crueldade é acentuada justamente pela comercialidade da narrativa, que se constrói com um refinamento, sagacidade e humor à la Wilder, mas com uma perversão na qual o polaco nunca se arriscou. A história trata, em linhas curtas, de um casal de amigos – dois meninos mimados e intelectualmente pedantes – que decidem assassinar um de seus colegas, pelo prazer de fazê-lo e pelo desafio de sairem impunes, e dar uma festa para os entes mais próximos da vítima com o buffet servido sobre seu caixão. É uma das maiores demonstrações de sadismo retratadas no cinema, com todo plano elaborado por Brandon (John Dall), mentor intelectual do ato, como um grande ato de zombaria, um trote insano e que não deixa de revelar uma malícia infantil. E nesse processo Hitchcock, ao impor o mais alto nível de entretenimento ao seu filme, faz de nós espectadores sádicos também, pois aproveitamos cada momento com os conturbados protagonistas, nos deleitamos, inclusive, com sua sagacidade e piadas de duplo sentido.

Rupert Cadell: Me sinto culpado, pareço ser o único me divertindo.

Essa linha de diálogo proferida pelo personagem de James Stewart é a cristalização do que Hitchcock nos mostra em toda sua carreira, mas com maior intensidade em Festim Diabólico. O filme, por um momento, torna quase palatável o absurdo da situação, sendo os lampejos de humanidade trazidos pela comovente (e belamente contida) performance de Cedrick Hardwicke, que interpreta o pai do menino assassinado, e pelos momentos finais com o personagem de Stewart (outra grande performance). Não há espaços para o sentimentalismo e Hitchcock nunca cede a ele.
O que é realmente ousado – ainda mais do que fazer um filme cujos protagonistas são um casal homossexual, em plena década de 40 – é o tratamento que o filme dá aos assassinos. Eles são os protagonistas, são jovens interessantes, inteligentes, de personalidades marcantes e carismáticos. São personagens de gênese monstruosa (um chega a ser um pleno psicopata), com conceitos morais completamente distorcidos, mas construídos com tantas nuances, detalhes psicológicos, e apresentados com tanta franqueza, sem nenhum tipo de julgamento, que são plenamente identificáveis, agradáveis até. Se Brandon é plenamente cativante, Phillip é certamente intrigante. É tão fácil quanto equivocado pensar que um é o vilão enquanto o outro é o manipulado, apenas pela diferença de força entre suas personalidades. Brandon pode ser um psicopata enquanto Phillip não o é, mas esse último não deixa de ser uma figura enganosa (tanto quanto sua história sobre matador de galinhas), com valores morais distorcidos e complexo de superioridade. A diferença entre eles é muito mais de frieza – Phillip teme mais o fracasso e seu arrependimento parte desse medo, e não da consciência do erro – do que de índole, mas ambos desejavam fazer o que fizeram.

A verdade que passou a ser esquecida com o tempo é que os mestres identificados na "política dos autores" pelos críticos da Cahiers costumavam trabalhar com excelentes roteiros, e é preciso muita ingenuidade ou desconhecimento da história do cinema para achar que nomes como Hitchcock, ou Howard Hawks, apenas por não serem eles mesmos escritores, não dominavam criativamente o processo de escrita (ou reescrita, em casos). Não há acidentes, Hitchcock não teve uma carreira extremamente coesa em temática e forma porque os roteiros certos casualmente caiam no seu colo. A mise-en-scèce clássica – essência do cinema de autor – encontrava seu propósito nos enredos que buscava traduzir em imagens, conceito esse que foi sendo questionado mais adiante na história do cinema.

O que nos leva, então, à escolha de Hitchcock de filmar Festim Diabólico como um grande plano sequência (ambição que teve que ser redimensionada para as condições técnicas da época, em que cada rolo de filme suportava apenas cerca de 10 minutos de filmagem). Embora seja claro o caráter de showman do diretor, me parece que não haveria outra forma na qual esse material pudesse ter funcionado mais eficientemente. Explico. Festim Diabólico é uma obra imensamente marcada pela sua temporalidade, e é essa dimensão de espaço temporal que confere sua personalidade, além de ser fundamental para a coesão estrutural de seu roteiro. A filmagem é um grande truque cujo propósito é justamente evitar que haja truques na narrativa; nada é escondido, a sinceridade para com o espectador é absoluta (começando já pela revelação inicial do ato assassino), pois acompanhamos o desenrolar dos atos tal como os personagens, no mesmo tempo desses e dentro do mesmo espaço. É como se fossemos outro convidado da festa, mais do que isso, somos o terceiro cúmplice no assassinato, porque estamos junto dos outros dois desde o início como observadores passivos e silenciosos, cuja presença não é notada. A câmera se movimenta com as mesmas limitações de uma pessoa, de uma forma que observamos tudo através do ponto de vista que Hitchcock determinou para nós. Não há ângulos altos ou baixos, jump cuts, passagens abruptas, fusões, nem nada que remeta à linguagem cinematográfica per se, tudo – com a breve exceção do primeiro plano externo, que serve apenas para apresentar os créditos – é capturado mais ou menos de um ponto de vista correspondente a um olhar humano.

Mas voltando ainda à temporalidade – e prometo que já estou acabando – Festim Diabólico é justamente isso: o panorama da cidade de Nova York ao fundo enquanto o dia vai esvaindo-se em noite e as luzes dos letreiros neon passam a tomar conta. Essa mudança de luz natural que acompanha todo filme – além de ser seu elemento mais charmoso – é a passagem gradual do tempo que marca um momento muito específico no qual um ato cruel foi cometido.

NOTA (5/5)

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